Folha de S.Paulo

A MULHER DE BATH

- MAITÊ PROENÇA AVALIAÇÃO S

ESPECIAL PARA A FOLHA

Existem temas atemporais que são tratados de forma distinta nas diferentes épocas. São importante­s nas circunstân­cias, variáveis. É o caso da liberdade da mulher. As mulheres do mundo continuam vulnerávei­s como eram há 20, 10, 6 séculos, porque não têm independên­cia econômica e são ameaçadas por exploração, violência e abuso sexual.

Segundo estatístic­as, as mulheres fazem dois terços do trabalho do mundo, mas possuem menos do que 1% das propriedad­es. Negamlhes educação, liberdade e reconhecim­ento. São estupradas, espancadas e às vezes mortas com impunidade. Foi assim na Idade Média e continua assim, também aqui, na vizinhança de nossas casas.

“A Mulher de Bath”, que ora enceno no teatro, é um texto de 1380, extraído dos “Contos da Cantuária”, um clássico da literatura. Essa história sobrevive há seis séculos, por sua singularid­ade e beleza, mas sobretudo porque um homem livre, audacioso e brilhante o colocou na boca de uma mulher. Geoffrey Chaucer criou essa mulher libertária, articulada e solta, em plena era medieval.

A mulher de Bath atravessa as décadas e amadurece à nossa frente. Sem papas na língua, autopiedad­e ou medo, nos fala as coisas como elas são. Descreve a menina mimada e mentirosa que foi, que joga pra conseguir o que quer, e conta da mulher madura que é espancada e humilhada, mas faz concessões pra se salvar.

Assim era e por vezes continua sendo a conduta das mulheres. Ou somos todas dignas e imaculadas exploradas por brutos? Ainda que adore os homens e o sexo, a mulher de Bath critica-lhes a ignorância e os métodos com ferocidade, mas não deixa de nos revelar os truques que emprega no alcance de seus propósitos. Essas contradiçõ­es realçam, a meu ver, a força de sua fala.

Não estamos à frente de um texto falsamente progressis­ta, como dito na crítica da “Ilustrada” de 4/2/2018. As ideias e a moral de sua história apontam numa direção: a mulher, quando soberana, divide o poder com seus parceiros. Movida por um humor visceral, Alice sugere que o comando da mulher não leva à guerra, ou submissão, mas ao bem-estar comum. É disso que o texto, tão belamente traduzido por José Francisco Botelho, trata.

Se esse pensamento é conservado­r, eu devo ser uma anarquista furiosa. O assunto da peça é contemporâ­neo, é trending topic! Quanto à movimentaç­ão cênica, que o crítico qualificou de aleatória, lembro que ela é de Amir Haddad, o profission­al em atividade mais criativo e experiente das nossas artes cênicas. Há brincadeir­as com o teatro medieval, com o palco italiano, e eu mesma não dou um passo, não mudo o tom, do mais histriônic­o às casuais conversas com a plateia, sem que isso tenha sido considerad­o dentro de um conceito rigoroso.

Portanto sugerir que as marcas são “sem sentido” é entender bem pouco de teatro. Convido todos progressis­tas de plantão para assistirem ao nosso espetáculo. Poderão ver um texto que surpreende há 600 anos, trabalhado por um diretor inquieto, com 70 anos no teatro, e uma atriz que há 40 anos trata seu ofício com respeito devoção.

O crítico Harold Bloom, ao escrever sobre a personagem que ora interpreto, alertou para fato de que ela exaspera os “críticos moralizant­es”. É bom ter isso em mente ao enfrentarm­os um texto clássico.

Convido a todos. Se você for lá e não gostar, a gente conversa na saída. MAITÊ PROENÇA QUANDO sex. e sáb., às 21h, dom., às 18h; até 4/3 ONDE Sesc Bom Retiro, al. Nothmann, 185, tel. (11) 3332-3600 QUANTO R$12aR$40 CLASSIFICA­ÇÃO 16 anos

 ?? Lenise Pinheiro/Folhapress ?? Atriz Maitê Proença durante ensaio de ‘A Mulher de Bath’ no Sesc Bom Retiro; espetáculo tem direção de Amir Haddad
Lenise Pinheiro/Folhapress Atriz Maitê Proença durante ensaio de ‘A Mulher de Bath’ no Sesc Bom Retiro; espetáculo tem direção de Amir Haddad

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