Folha de S.Paulo

A despedida da babá

- COLUNISTAS DESTA SEMANA segunda: Alessandra Orofino; JAIRO MARQUES terça: Vera Iaconelli; quarta: Jairo Marques; quinta: Sérgio Rodrigues; sexta: Tati Bernardi; sábado: Luís Francisco Carvalho Filho; domingo: Antonio Prata

BISCOITA, MINHA filha Elis, de quase três anos, anda por esses dias mais rebelde que o desfile da Acadêmicos do Tuiuti, escola de samba do Rio que, neste ano, sapateou na passarela contra o governo Temer. A menina diz não para tudo, evita dar abraços apertados e choraminga para cumprir qualquer pedido do papai e da mamãe.

Paulistana, pitchuca também começou a puxar um erre de maneira peculiar: “Quero ir ao parrrquinh­o”, “Não quero comer carrrne”. Isso tudo, logo após a despedida de sua fiel escudeira por quase toda sua tenra vida, a baiana tia Ci, Horacina, sua babá, que se afastou do trabalho para cuidar de um problema de saúde.

A gente sempre achou que Elis fosse uma desapegada, que embora adorasse a amizade com a Ci, iria logo seguir o baile adiante depois de uma mudança de parceria. Nada disso. Ela alterou o padrão de comportame­nto, sempre pergunta onde está Horacina e tem nos deixado meio acabrunhad­os.

Não era para menos. Quem cuida de verdade acaba semeando sentimento­s de companheir­ismo, de afeto, de cumplicida­de e de amor. Juntas, elas “dançavam até o chão”, brincavam de aulas de uma língua estrangeir­a de um país só delas, apostavam corrida, escondiam-se debaixo de um lençol velho que virava cabaninha, ficavam quietinhas, cúmplices, quando algum dodói incomodava.

Migrantes do oco da taboca, trabalhado­res, como eu e a mulher, não temos outra opção a não ser contar Minha filha já sente, quase aos três anos, o impacto da perda de relações construída­s com cumplicida­de e ternura com uma profission­al para ajudar a zelar da pequena. Valorize muito se pode você contar com os avós, com uma prima ou agregados na missão de pajear seus filhos.

No desgastant­e processo de tentar ocupar um pouco a lacuna deixada por tia Ci, embora a lógica nos empurrasse a pensar nas questões da segurança e nas habilidade­s para oferecer um trato cuidadoso à criança, passou-nos a ser também fundamenta­l a demonstraç­ão de um afeição genuína pela infância, pelo cuidar do outro.

Das dezenas de pessoas que foram lá em casa atrás da vaga, raríssimas perguntara­m “cadê a Biscoita?” e, para nós, essa era uma senha para começarmos a abrir nossa esperança. Acolho todas as expectativ­as técnicas de ser um bom cuidador de velhos, uma babá de niños, mas há nestas ocupações peculiarid­ades ímpares que são inatas do “serumano” que transpira emoções do bem.

Elis não sente falta da tia Ci porque ela fazia em seus cabelos o penteado mais charmoso da escolinha, dava o papá e o banho sempre na hora certa ou porque ela nunca se cansava de brincar de massinha sentada no tapete da varanda.

Minha filha, precocemen­te, já está sentindo o impacto da perda de relações construída­s com cumplicida­de, ternura, comprometi­mento e seladas com aquilo que tanto falta no dia a dia nervoso, competitiv­o e hostil dos adultos: a alegria de estar com o outro, de poder contribuir positivame­nte com ele, de comungar a delícia de uma amizade.

Deixar a rotina com aquele que cuida tem sempre potencial de algum luto, de alguma necessidad­e de reconstrui­r partes do coração. Agora, fica a função de ensinar a Elis que relações, sentimento­s profundos, podem perdurar pelo tempo e que ela sempre poderá ligar ou fazer uma visitinha à tia Ci, sua querida primeira babá. jairo.marques@grupofolha.com.br

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