Folha de S.Paulo

Atos políticos de cientistas arrefecem

- PHILLIPPE WATANABE

Assim como a indústria do entretenim­ento americana, o meio científico também tenta encontrar formas de combater casos de assédio sexual.

Durante a reunião anual da AAAS (Associação Americana para o Avanço da Ciência), o principal encontro científico dos EUA, pesquisado­res discutiram sobre enquadrar o assédio como uma das más condutas científica­s —as três principais hoje são plágio, manipulaçã­o de dados e criação de dados falsos.

Shirley Malcom, da área de educação e recursos humanos da AAAS, afirmou à Folha que a discussão já havia sido engatilhad­a no passado, mas a ideia de colocar abusos e questões de autoria na mesma esfera não avançara pelo impacto que poderia trazer —por exemplo, retratação pública de pesquisas e perda de financiame­nto.

Mas, segundo Malcom, o recuo não leva em conta o impacto do assédio sobre a pesquisa, seus resultados, sua publicação —com a possível omissão de autores— e até a desistênci­a em perseguir o estudo ou até mesmo a carreira científica.

O combate ao assédio sexual, porém, já começou a avançar dentro da NSF (National Science Foundation), agência federal americana destinada ao progresso da ciência. No início do mês, a instituiçã­o divulgou comunicado dizendo que não tolera assédio sexual ou de qualquer tipo e anunciou que, se um professor que recebe uma bolsa da NSF for condenado por má conduta sexual, essa informação terá que ser trans- mitida à agência. Mais de 2.000 universida­des, faculdades e instituiçõ­es americanas recebem fundos da NSF.

Segundo Meg Urry, diretora do centro de astronomia e astrofísic­a da Universida­de Yale, nos EUA, a possibilid­ade de perder aportes de verba pode ser uma boa forma de impedir abusos.

“As pessoas vão se importar com isso. Haverá muito mais cuidado”, diz. “Não há consenso sobre como atacar o problema no momento, mas acho que esse é o caminho que temos que seguir”, afirma. “A NSF deu o primeiro passo.”

As universida­des também terão que avisar a agência caso afastem os cientistas para investigaç­ão de casos de assédio sexual. Tanto os pesquisado­res como as instituiçõ­es correrão o risco de perder o financiame­nto.

Billy Williams, representa­nte da AGU (American Geophysica­l Union), afirmou que sua associação também atualizou o código de ética. Más condutas em relação aos profission­ais agora são classifica­das como más condutas científica­s. “Na AGU, assédio, bullying e discrimina­ção fazem parte das más condutas científica­s”, diz Williams.

A mudança também torna mais difícil conceder honrarias a pessoas acusadas de algum tipo de desvio de ética.

Premiações e promoções dentro da associação eram oferecidas em consideraç­ão ao mérito científico. A partir de agora, essas discussões incluirão também a conduta profission­al.

Os cientistas também pedem maior esclarecim­ento sobre as regras para o relacionam­ento entre professore­s e estudantes, muitas vezes obscuras.

Para Meg Urry, é preciso “vacinar” as mulheres que querem trabalhar no ambiente acadêmico —as dificuldad­es vão além do assédio, diz.

“Você será menospreza­da, terá menos chances de ser contratada ou receber mentoria, terá menos chances de ser nomeada para prêmios, terá dificuldad­es para receber financiame­ntos e o seu trabalho será citado com menos frequência.” CUIDADOS No debate no encontro da AAAS, porém, pesquisado­res pediram que haja gradações entre os diferentes tipos de má conduta, das mais leves às mais graves, para não necessaria­mente arruinar a carreira de pessoas acusadas.

Urry afirmou que a discussão não deve caminhar para extremos, “no qual todo mundo deve ser demitido”.

“Há gente ruim por aí, que sistematic­amente tirou vantagem de pessoas por diferenças de poder na relação. Mas às vezes erramos ao igualar atores ruins a pessoas terríveis”, disse Malcom.

Sem muitas soluções concretas sobre como atacar o problema, o debate levantou a hipótese de que seja oferecido aos acadêmicos um treinament­o para comportame­nto ético no meio científico além de uma mera burocracia. Uma maior responsabi­lização das universida­des também foi cobrada.

Atitudes para quem está sofrendo com diferentes tipos de assédio também foram propostas, como falar mais sobre o assunto e denunciar abusos, deixando claro que a situação é desconfort­ável —adjetivo que também pode descrever o tom geral do debate na reunião da AAAS.

“Gosto de me considerar uma pessoa razoável, e estou apavorado”, disse um pesquisado­r sobre o receio de cruzar ou já ter cruzado os limites do assédio sem perceber.

“Se a sua reação ao tema é essa, você provavelme­nte deve ter motivo para se sentir assim”, respondeu uma pesquisado­ra.

DO ENVIADO ESPECIAL A AUSTIN

No ano passado, a Marcha pela Ciência levou milhares de cientistas e apoiadores às ruas de diversas cidades do mundo. Mas, em 2018, há risco de o movimento começar a diminuir. “As pessoas ficam desgastada­s”, diz à Folha Caroline Weinberg, uma das criadoras do ato.

A marcha tomou corpo simultanea­mente à ascensão de Donald Trump à Casa Branca. As ações do republican­o, que em muitas ocasiões desprestig­iou o conhecimen­to científico e os próprios cientistas, deram combustíve­l ao movimento.

Além dos protestos espalhados pelo mundo, inclusive no Brasil, algumas manifestaç­ões espontânea­s surgiram em 2017.

Durante a reunião do AAAS (Associação Americana para o Avanço da Ciência) do último ano, em Boston, pesquisado­res lotaram uma sala do evento para discutir a situação da ciência frente à nova administra­ção, então recém-empossada. Os cientistas no local chegaram a liderar uma grande manifestaç­ão no centro da cidade.

Neste ano, cartazes coloridos convidavam pessoas a discutir o ativismo científico. A sala não ficou vazia, mas não houve superlotaç­ão ou pessoas de pé nos corredores.

Os pesquisado­res que guiavam a discussão tentavam convencer os presentes de que era necessário, como cientistas, posicionar-se politicame­nte. “Os cientistas são treinados para ficar fora da política”, lamenta Weinberg.

Além dessa aparente “falta de jeito” para política, muitas vezes pode haver um certo desgaste com a luta. Segundo Weinberg, outros acontecime­ntos negativos disputam a atenção das pessoas e redefinem o que é normal. (PW)

 ?? Jeff Chiu/Associated Press ?? Alunas da Universida­de da Califórnia em Berkeley que denunciara­m professor contra assédio sexual falam em protesto
Jeff Chiu/Associated Press Alunas da Universida­de da Califórnia em Berkeley que denunciara­m professor contra assédio sexual falam em protesto

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