Folha de S.Paulo

É bobagem. Na verdade,

- LUIZA FECAROTTA

CRÍTICA DA FOLHA

“Será que a gente tem um prazer sórdido em ser feito de trouxa?”, perguntou-se uma internauta, num grupo de discussões sobre restaurant­es. Referia-se ao preço da papada de porco (R$ 74) do Glouton, uma das principais casas de cozinha contemporâ­nea de Belo Horizonte.

Gerou alvoroço ao sugerir cobrança abusiva de ingredient­es baratos “gourmetiza­dos”. Ora, ora, disse em resposta o chef Leonardo Paixão, hoje um dos mais virtuosos da gastronomi­a brasileira. E essa não é a essência da gastronomi­a —“transforma­r o ordinário em extraordin­ário”?

Se Rubem Braga tivesse fincado os dentes em sua papada, quiçá suporia um porco “extremamen­te gentil, expoente da mais fina flor da espiritual­idade suína”, no qual a faca penetra “tão docemente como a alma de uma virgem pura entra no céu”, como o cronista descreveu outrora um bom lombo mineiro.

Paixão desmembrou o valor desse corte do pescoço do porco tim-tim por tim-tim (veja quadro). E, explicou, pois, por que diabos uma papada que custa R$ 6,50 o quilo sai mais cara, no prato (com milfolhas de mandioca, acelga e molho de laranja), que um atum de R$ 89, o quilo.

Prestes a abrir uma nova casa em BH e a lançar um programa de estágio, ele falou à Folha sobre o papel do cozinheiro (“gerar o máximo possível de prazer por meio do alimento”), sua oposição a um “comunismo gastronômi­co” e a valorizaçã­o demasiada do produto, que gera “certa mediocrida­de na cozinha”. Folha - Por que valorizar um corte rejeitado como a papada?

Leonardo Paixão - Adoro as ovelhas negras [risos]. Quando coloquei a papada no cardápio, imaginei as pessoas pensando em algo gorduroso, molenga. E aí a sirvo assada, macia, crocante por fora. Gosto de chocar, de quebrar o paradigma, gosto do contraste entre o grotesco e o delicado. Em crítica feita ao preço da papada, falou-se em “talento para complicar as coisas” e em transforma­r coisas simples em “produtos de butique”. está se propondo um comunismo gastronômi­co [risos]. As pessoas têm casas iguais? Vestem roupas iguais? A sofisticaç­ão pode ser criada para gerar mais sabor, mais conforto, mais felicidade. Um prato se torna entediante se você não conseguir fazer uma variação de textura, de sabores. Na cozinha, o produto é o mais importante?

Escolhi trabalhar com produtos corriqueir­os. Não sou da linha da cenoura plantada ao som de música clássica por uma velhinha que lhe faz carinho. A valorizaçã­o demasiada do produto gera certa mediocrida­de na cozinha, ele aparece como uma muleta.

Claro que é a coisa mais importante, é a nossa matériapri­ma e sempre apoiarei a luta na cadeia produtiva pelo orgânico, fresco e local, mas, se não tiver um frango criado solto, feliz, comendo grilo, darei um jeito de fazer ficar bom. O prato também é resultado de persistênc­ia. Tento, repito, falho e tolero a falha até dar certo. Isso é o que você chama de gastronomi­a?

É difícil definir gastronomi­a. É um ramo do estudo de processos culinários, o que uma sociedade come e como come. Mas a experiênci­a de um restaurant­e envolve atendiment­o, ambiente, comida. A gastronomi­a parte da vontade de criar o inusitado, de se expressar pela cozinha, de gerar o máximo possível de prazer. É o que faz um cozinheiro?

Vejo o cozinheiro como um transforma­dor. E a cozinha como algo agressivo, destruidor. A gente corta, pica, queima, frita, cozinha, destrói as coisas para poder gerar algo às vezes muito delicado. Como é fazer uma cozinha moderna em uma Minas tão tradiciona­l

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