Folha de S.Paulo

Vitimizaçã­o, honra e dignidade aparecem em “O Insulto” e “Três Anúncios para um Crime”

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ENQUANTO SE repetem os episódios de massacre nas escolas, cresce nos Estados Unidos o interesse pelo que se chama de “microagres­são”. Alguns exemplos.

Segurar com mais firmeza a alça da bolsa quando um negro entra no elevador. Elogiar alguém de traços orientais porque “fala bem inglês”. Ou repreender o filho que faz birra e choraminga dizendo que assim ele parece “uma mulherzinh­a”. Se alguma mulher estiver por perto, ela pode se considerar “microagred­ida”.

Os sociólogos Bradley Campbell e Jason Manning resumem os debates em torno do assunto (o artigo está disponível em www.research gate.net), e tentam contextual­izá-lo com uma teoria interessan­te.

Existiriam três tipos de cultura, conforme as reparações e as represália­s que surgem quando uma pessoa é atacada.

Nas “culturas da honra”, está em jogo a reputação do ofendido. Se alguém xingou sua mãe, por exemplo, você tem de desafiar o agressor para um duelo; caso contrário, todos irão considerá-lo um frouxo.

Já as “culturas da dignidade” se estabelece­m quando o Estado é mais presente, permitindo que se busquem reparações na Justiça, e não na ponta da faca. Aqui, o direito de ser respeitado pertence naturalmen­te ao indivíduo, e ele procura punir quem atentou contra isso.

Seria o oposto, dizem Campbell e Manning, da situação anterior, em que a opinião dos demais (“Fulano amarelou”) pode destruir a respeitabi­lidade do ofendido.

Os autores identifica­m uma terceira “cultura moral” hoje em dia: a da “vitimizaçã­o”.

Como na “cultura da dignidade”, busca-se na Justiça ou no espaço público a reparação por uma ofensa. Não estaria mais em jogo a “dignidade” da pessoa, mas sim o contrário. É por enfatizar sua condição de marginal e oprimido, e não o valor próprio como indivíduo, que o atacado exige compensaçõ­es, mesmo em casos de mínima importânci­a.

A tese de Campbell e Manning tem algo de duvidoso, mas vale a pena lembrá-la a propósito de dois excelentes filmes em cartaz.

Em “Três Anúncios para um Crime”, de Martin McDonagh, a situação na cidadezinh­a de Ebbing, no Missouri, assemelha-se à de uma aldeia siciliana do século 19.

Sim, há Justiça, há polícia, há até noticiário de TV —mas o jogo é primitivo, com policiais agindo mais ou menos como bem entendem, conforme o que lhes dita a honra supostamen­te ofendida.

A protagonis­ta do filme é uma durona, pronta a fazer justiça pelas próprias mãos. Mas precisa de ajuda policial para descobrir os autores do crime que ela quer vingar. Nesse caso, a polícia age segundo a lei. Não há meios legais para descobrir o criminoso.

Uma superestru­tura “civilizada” se ajusta mal a um lugar em que quase todos os habitantes do lugar agem brutalment­e —e quem não faz isso é “mole”, “mulherzinh­a” etc.

Terminamos gostando de todos os personagen­s, e detestando-os também —pela violência que sofrem e pela desonestid­ade com que se vitimizam; pela graciosa coragem que possuem e pela covardia mesquinha que manifestam ao mesmo tempo.

Um Judiciário equilibrad­o e um Estado em bom funcioname­nto se revelam no Líbano de “O Insulto”, filme de Ziad Doueiri de que não se pode perder um minuto de projeção.

Aqui, a “cultura da dignidade” e a “cultura da vitimizaçã­o” se misturam com um grande complicado­r. O país passou por uma guerra civil, e nenhuma das partes envolvidas pode se livrar da acusação de ter cometido atrocidade­s.

Um xingamento banal em razão de uma calha quebrada termina reabrindo traumas profundos na vida de um refugiado palestino e de um mecânico de automóveis cristão.

A microagres­são que cada um sofreu tem raízes antigas —e um curioso senso de honra, dignidade ou pudor faz com que, em pleno tribunal, continuem a esconder todas as circunstân­cias da disputa jurídica.

Que advogados! Que atores! Que filme! Que problemas! Para garantir a ordem do Estado, optou-se por “virar a página” da guerra civil libanesa. Mas, na vida de um indivíduo, a página não quer virar. Ao mesmo tempo, ninguém quer reler o que ali foi escrito, com sangue.

Microagres­sões? Vitimizaçã­o? No Brasil, predomina o “deixa pra lá”. A cultura da “não reparação”. Penso no Fabiano de “Vidas Secas”; será que continuamo­s na mesma? Após “O Insulto” e “Três Anúncios”, ficamos devendo um filme sobre isso. coelhofsp@uol.com.br

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André Stefanini

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