Folha de S.Paulo

Razão em não querer tê-la

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RIO DE JANEIRO - O grande poeta é aquele que nos diz coisas que não sabíamos ou não tínhamos pensado e, de repente, abrem clareiras no nosso entendimen­to. Não precisa fazer isso em versos. Pode fazê-lo também numa crônica de jornal, numa mensagem de e-mail ou num bate-papo de botequim —basta que o faça de maneira concisa, precisa e original, como é obrigação dos poetas. Ferreira Gullar era esse poeta. Em seus últimos anos de vida, ele revisou muitas das lutas em que se meteu e, subitament­e cansado, concluiu que “não queria ter razão — queria ser feliz”.

Gullar morreu há pouco mais de um ano, sem imaginar que, em tão pouco tempo, o Brasil veria multiplica­r o número de seus habitantes que não querem ser felizes —só querem ter razão. Eles estão em toda parte, principalm­ente nas redes sociais, e não há assunto sobre o qual não se dediquem a comentar, condenar, contestar, desmentir, desdenhar, rejeitar, reprovar, desqualifi­car. E, se possível, interditar, censurar ou proibir seja o que for que alguém pense, desde que de maneira diferente da sua.

Pena que, na maioria dos casos, essas opiniões não venham organizada­s de maneira adulta e arrazoada —afinal, não querem ter “razão”?—, com palavras corretas, adequadas e, de preferênci­a, envoltas em papel de bala. Ao contrário, vêm na língua mais estropiada, furibunda e irracional possível, como se seus usuários vivessem pintados para a guerra.

Esse tiroteio de mensagens hostis e ofensivas não contribui para a razão que, supõe-se, se poderia extrair de uma discussão civilizada. Ao contrário, dissemina um ódio surdo e subterrâne­o —insensato—, protegido pelo anonimato. E não se trata de perguntar o que acontecerá quando esse ódio vier à tona. Ele já está à tona.

Gullar tinha razão em não querer tê-la. É melhor ser feliz. CLAUDIA COSTIN

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