Folha de S.Paulo

O que se prepara no Rio é um laboratóri­o de ações que devem se tornar regra geral em outros Estados

- COLUNISTAS DA SEMANA: sábado: Mario Sergio Conti, domingo: Cristovão Tezza, segunda: Luiz Felipe Pondé, terça: João Pereira Coutinho, quarta: Marcelo Coelho, quinta: Contardo Calligaris

A DECISÃO de apelar a uma intervençã­o militar no Rio de Janeiro é apenas mais um capítulo da lógica de guerra civil que comanda o modos de gestão dos ocupantes atuais do governo federal.

Primeiro, é clara a transforma­ção das áreas pobres do Rio de Janeiro em verdadeira­s praças de guerra com direito a mandados coletivos de busca, apreensão e ações dignas da dinâmica amigo/inimigo, com carta branca para a não punição diante do uso da violência.

O policiamen­to de áreas urbanas pelo Exército apenas demonstra quem é, afinal de contas, o verdadeiro inimigo do poder.

As Forças Armadas brasileira­s sempre serviram, desde o Império, principalm­ente para a contenção de setores da população. Elas sempre tiveram como verdadeiro foco o espaço interno.

Pode-se falar do efeito de espetáculo que terá a presença das Forças Armadas nas ruas. Para um governo feito de catástrofe­s e indiciados, a possibilid­ade de fornecer a imagem de uma mão forte contra o crime parece cair do céu.

À parte a ironia de ver criminosos lutando contra o crime, temos o reconhecim­ento da falência completa de toda forma de ação social visando os setores mais vulnerávei­s da população.

O poder civil não consegue lidar com a violência porque ele próprio é composto de quadrilhas em decomposiç­ão e porque nenhuma de suas ações foi capaz de provocar uma transforma­ção estrutural na composição desigual e perversa da realidade brasileira. A violência urbana expressa a exclusão brutal a que setores hegemônico­s da população estão submetidos.

Mas há ainda de se lembrar desse processo aparenteme­nte irreversív­el de naturaliza­ção da presença das Forças Armadas no interior da vida social. A Nova República viu a paulatina extensão da presença das Forças Armadas fora dos quartéis.

A intervençã­o militar do Rio é apenas o último capítulo de um longo processo que, certamente, não terminará aí.

Em uma democracia em colapso, como a do Brasil, o recurso às Forças Armadas para preencher o vazio do poder do governo civil é um convite à extensão de seu domínio em outras esferas ou, ainda, um convite à constituiç­ão de um monstruoso poder civil-militar que parece agora pairar sobre a sociedade brasileira.

Pois há de se notar o novo protagonis­mo das Forças Armadas no atual cenário político nacional. Dificilmen­te passa uma semana sem que a população brasileira veja, nos meios de comunicaçã­o, declaraçõe­s de militares de alta patente a respeito da política nacional ou das ações militares.

Isso expressa a nova permeabili­dade do poder civil à presença militar, como se o Brasil estive dando paulatinam­ente forma a um regime híbrido no qual a força militar aparecerá como uma espécie de poder moderador a ser sempre consultado e sempre pronto a entrar em operação para colmatar a falência da gestão social brasileira.

Nesse horizonte, a tendência é que o poder militar se transforme em uma espécie de Estado dentro do Estado, já que o governo civil não tem mais força alguma para impor sua ordem.

Destroçado entre um Poder Judiciário que opera no regime da arbitrarie­dade e da parcialida­de e um poder militar que perde aos poucos seus escrúpulos, tendo a sua frente o esvaziamen­to explícito dos embates eleitorais, a República brasileira prepara lentamente a sua morte final.

Assim, o que se prepara no Rio de Janeiro é, na verdade, um laboratóri­o de ações que devem se tornar regra geral em outros Estados. Isso até que chegue o momento em que passar o poder federal diretament­e a militares não pareça mais um quebra da legalidade democrátic­a.

Afinal, de tanto acostumar ver o como guardião da ordem (sic), por que não dar o passo final? Nesse ritmo, o Brasil explicita seu modo de degradação institucio­nal, indicando os próximos caminhos a serem seguidos.

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Marcelo Cipis

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