Folha de S.Paulo

O coletivo e o individual

- COLUNISTAS DESTA SEMANA segunda: Alessandra Orofino; LUÍS FRANCISCO CARVALHO FILHO terça: Vera Iaconelli; quarta: Jairo Marques; quinta: Sérgio Rodrigues; sexta: Tati Bernardi; sábado: Luís Francisco Carvalho Filho; domingo: Antonio Prata

A SEMANA foi marcada por percepções opostas da palavra “coletivo”.

O governo Temer e o general intervento­r do Rio de Janeiro aspiravam (ou aspiram) a mandados coletivos de busca e apreensão. A ideia ameaça habitantes de favelas cariocas, não o Leblon, desde 2011. A Justiça do Rio já desautoriz­ou algo semelhante em 2016.

Juízes não podem ampliar o arco da repressão e atingir a morada de gente inocente em bairros inteiros —e não apenas o domicílio do indivíduo suspeito. A “realidade urbanístic­a” da cidade não autoriza o abuso.

Se o mandado coletivo de busca (não previsto pela Constituiç­ão) amplia a perspectiv­a de sofrimento individual, pelo potencial de violação de direitos civis da vizinhança, por exemplo, a decisão da segunda turma do STF (Supremo Tribunal Federal) concedendo prisão domiciliar para presas provisória­s gestantes ou com filho menor de 12 anos ameniza o sentimento de barbárie.

Maioria apertada (3 a 2), os ministros concederam habeas corpus coletivo (não previsto pela Constituiç­ão) capaz de proteger a maternidad­e e crianças inocentes.

A decisão não é do plenário do Supremo e instâncias inferiores têm como boicotá-la, estabelece­ndo embaraços para sua implementa­ção generaliza­da, mas a atitude é civilizató­ria, humanista, uma guinada na história judicial e doutrinári­a do habeas corpus.

Depois de desvaloriz­ar o instrument­o constituci­onal do habeas corpus em tantos julgamento­s recentes, Juízes não podem ampliar o arco da repressão para atingir a moradia de gente inocente nas favelas cariocas o Supremo inova e beneficia número indetermin­ado de pessoas, contrarian­do parecer da Procurador­ia-Geral da República e ampliando sua utilidade institucio­nal.

Até aqui, habeas corpus só era impetrado em favor de alguém individual­izado, identifica­do, ainda que sem nome. Advogadas do Coletivo de Advogados em Direitos Humanos tomaram a iniciativa de agir genericame­nte em favor de mulheres submetidas à prisão cautelar que “ostentem a condição de gestantes, de puérperas ou de mães com crianças com até 12 anos de idade sob sua responsabi­lidade”, além “das próprias crianças”.

A decisão (transmitid­a para os tribunais brasileiro­s com alçada criminal para que cumpram seus mandamento­s no prazo de 60 dias) é bastante limitada. Não alcança a mulher presa por força da condenação ou, preventiva­mente, por delito praticado com violência ou grave ameaça, mas beneficia mulheres detidas por tráfico de drogas, o segmento que mais cresce na população carcerária desde os tempos de Lula.

O ano judiciário começa contra a maré. Ricardo Lewandowsk­i ataca a “cultura do encarceram­ento” que prolifera na magistratu­ra. Reserva à Defensoria Pública da União a legitimaçã­o ativa para formular o habeas coletivo: seus efeitos têm abrangênci­a nacional, o que autoriza o STF a suprimir instâncias de julgamento. Gilmar Mendes defende a coletiviza­ção. Celso de Mello sugere adaptação constituci­onal ao momento histórico. No mérito, Dias Toffoli adere à maioria e Edson Fachin fica isolado.

O caráter coletivo das duas situações não se confunde.

A Constituiç­ão não é maleável ou desconexa. A intervençã­o federal na segurança pública não significa estado de sítio. Habeas corpus coletivo não é precedente para mandado coletivo de busca. O primeiro quer a efetividad­e de garantias constituci­onais. O segundo as subtrai. lfcarvalho­filho@uol.com.br

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