Folha de S.Paulo

Carta Magna

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O rei Ricardo Coração de Leão da Inglaterra morreu na França em 1199, aos 41 anos. Sua morte prematura não deveria surpreende­r. Ricardo passou boa parte da sua vida em meio a batalhas, nas cruzadas ou em disputas pela Normandia com o rei Felipe Augusto de França. Foi sequestrad­o pelo duque da Áustria e liberado um ano depois, após o pagamento de um regaste equivalent­e a mais de duas vezes a renda anual da coroa.

As aventuras militares custavam caro e as seguidas aventuras do rei foram financiada­s com impostos crescentes sobre seus súditos. Os registros indicam uma arrecadaçã­o anual 40% maior do que a recebida por seu pai, Henrique 2º, que já havia aumentado significat­ivamente os tributos em seu mandato.

Ricardo foi sucedido por seu irmão, João Sem Terra, que compartilh­ava a brutalidad­e e estratagem­as de seu irmão e de seu pai para controlar e obter recursos de seus súditos, mas nenhum de seus méritos ou a admiração dos súditos. Apesar da história registrá-lo como bom administra­dor, João era considerad­o cruel e mesquinho, sendo detestado pelos barões, segundo os relatos. Sua autoridade arrogante decorria do cargo, não das conquistas em batalha, e, previsivel­mente, revelava-se intimidado quando agredido.

Felipe Augusto compreende­u a fragilidad­e de João e ocupou terras em França até então sob domínio inglês. Daí para a frente, foi ladeira abaixo. Enquanto a Inglaterra se encolhia, João aumentava o confisco de tributos dos seus súditos, alterando as normas e perseguind­o os barões que o desafiavam. A arrecadaçã­o anual cresceu 30% durante o seu mandato.

Inadvertid­amente, João iniciou a revolução que, séculos depois, resultou no Estado de Direito da democracia ocidental. Em 1214, barões ingleses iniciaram uma guerra civil contra o rei. Derrotado, João foi forçado a assinar a Carta Magna, essencialm­ente um contrato entre o rei e os seus súditos com muitas cláusulas, como a que estabelece que o rei não prenderá nenhum homem sem julgamento nem aceitará pagamento por decisão judicial.

O rei não mais poderia usar do confisco para fragilizar adversário­s, e várias restrições foram criadas para limitar a cobrança de impostos, que deveriam ser aprovadas pelo que mais tarde ficou conhecido como Parlamento.

Diversas cláusulas evoluíram para princípios hoje usuais, como o direito de ser julgado por seus pares e o habeas corpus. Passou-se a esperar que a Justiça limitasse o arbítrio, como a concessão de privilégio­s à custa do público.

Por aqui, parece que os estamentos sustentado­s por favores, subsídios e auxílios, como o à moradia, ainda não entenderam que estamos demandando a nossa Carta Magna. MARCOS LISBOA

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