Folha de S.Paulo

OPINIÃO Sistema público americano de saúde mental não consegue evitar chacinas

- AMY BARNHORST

Há algum tempo, dois policiais chegaram com um rapaz de 21 anos na unidade de emergência onde atendo como psiquiatra. Os pais haviam chamado a polícia ao ver suas publicaçõe­s on-line sobre morte iminente na escola técnica onde estudava e sobre Columbine. O irmão contou que ele comprara uma arma.

Quando o entreviste­i, ele negou tudo. Não tinha histórico de doença mental e afirmou não precisar de tratamento. Eu tinha de avaliar se ele preenchia os critérios para ser internado a contragost­o no hospital psiquiátri­co.

Cada massacre reabre o debate sobre as causas dessa violência e como evitá-la. Quem se opõe a restringir as armas geralmente se volta para o sistema de saúde mental.

Os psiquiatra­s não deveriam identifica­r alguém perigoso como Nikolas Cruz, acusado pela chacina em uma escola na Flórida, no dia 14, após ele ter assustado colegas, ferido animais e feito ameaças?

Cruz já teve depressão, fez terapia e passou por uma avaliação mental de emergência, em 2016. Por que, os críticos questionam, ele não recebeu tratamento? Não podemos impedir jovens instáveis e revoltados de comprar armas?

É mais difícil do que parece. O sistema público de saúde mental não identifica a maioria dessas pessoas porque elas não procuram ajuda —e, quando o fazem, leis que protegem as liberdades civis dos doentes impõem limites a tratamento­s a contragost­o.

Em grande parte dos EUA, o paciente tem que representa­r um perigo a si e aos outros para ser internado —é isso que força a pessoa a se tratar quando está tão afetada pela doença que não pode decidir.

O rapaz que tinha escrito que queria atirar nos colegas estava calmo, era educado e estava disposto a cooperar. Explicou que as mensagens eram bravata. Negou ser suicida ou homicida; nunca tinha ouvido vozes. Admitiu ser alvo de bullying e se ressentir da vida social dos colegas, mas negou que pudesse se tornar violento com eles.

Estava claro que ele não tinha doença psiquiátri­ca que justificas­se a hospitaliz­ação involuntár­ia, mas eu relutava em liberar alguém cuja história repetia a de assassinos.

Eu poderia alegar precisar mais tempo para observação e interná-lo, mas, em uma semana, ele poderia procurar um ouvidor e dizer que tinha sido confinado contra a vontade —alguém que o libertaria ao concluir, como eu, que ele não era perigoso por causa de alguma doença mental.

Se o ouvidor não o liberasse, o hospital teria 14 dias para agir. O psiquiatra trataria delírios, paranoia, impulso suicida, comportame­nto maníaco, autoflagel­ação, alucinação e catatonia, mas não há cura certa para inseguranç­a, ressentime­nto e ódio.

O único benefício de interná-lo seria proibi-lo de comprar armamento em um estabeleci­mento com licença federal. E isso não adiantaria se ele já tivesse armas ou procurasse um revendedor que não checasse seu histórico.

Internei o paciente, que foi solto pelo ouvidor dois dias depois. Ele não tomou remédios, não transgredi­u a proibição de comprar armas em loja licenciada e deixou o hospital como entrou. Como muitos outros, não vai procurar terapia, e não há como lhe impor esse tratamento.

O sistema de saúde mental não consegue impedir atentados e chacinas porque raramente a doença mental é a causa desse tipo de violência.

Mesmo que se tratem todos os potenciais atiradores, não há cura certa para jovens revoltados que nutram fantasias violentas. E as leis para impedir que doentes mentais adquiram armas são limitadas e facilmente dribladas.

Em vez de esperar pela imposição de tratamento psiquiátri­co a todos que emitam sinais de alerta, deveríamos nos concentrar em manter esses jovens longe das armas. AMY BARNHORST

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