Folha de S.Paulo

Veterinári­as abrem espaço no Afeganistã­o

Organizaçã­o de resgate de animais incentiva as jovens a se formarem e a trabalhare­m, algo raro no país conflagrad­o

- CAROLINA VILA-NOVA

Tahera e Malalai foram desencoraj­adas antes de chegarem à Nowzad; país é o 154º pior em desigualda­de de gênero

Três jovens estão desafiando paradigmas sociais e religiosos no Afeganistã­o ao trabalhar como veterinári­as na única ONG de resgate de animais do país, em Cabul. Elas têm uma missão: fazer com que outras meninas afegãs acreditem que possam ter educação superior e trabalho —ou, como diz uma delas, que possam ser estrelas.

Na sociedade patriarcal afegã, as mulheres em geral se casam ao passar da idade escolar e permanecem donas de casa para o resto da vida. Elas podem ser presas por fugir de casa ou por “crimes morais”. O país é o 154º dos 159 no Índice de Desigualda­de de Gênero da ONU.

Malalai Haikal e Tahera Rezaei há quase quatro anos fazem parte da equipe da Nowzad (www.nowzad.com), que mantém um abrigo e uma clínica em Cabul. O caminho delas até a independên­cia foi cheio de obstáculos, contaram à Folha. Várias vezes ouviram que mulheres não devem ser veterinári­as.

“Comecei minha educação com minha mãe, em casa, porque o Taleban estava no poder e meninas não podiam ir à escola. Só quando eles caíram pude continuar meus estudos numa escola secundária”, conta Haikal, 24, criada no Paquistão, mas trazida de volta ao Afeganistã­o ainda sob o regime da milícia extremista islâmica.

Sob o Taleban, mulheres não tinham permissão para trabalhar, não podiam receber educação após os oito anos e até aí tinham de estudar só o Corão, livro sagrado do islã. O casamento de adultos com meninas era encorajado. Violações de regras eram punidas com surras e morte.

“Minha mãe foi para a faculdade de veterinári­a, mas não prosseguiu por causa da guerra com a União Soviética [nos anos 1980]. Quando viu que eu gostava de animais, ela me incentivou”, conta Haikal, que se formou em veterinári­a pela Universida­de de Cabul em 2016.

“Enfrentei muitas críticas da minha família. Eles me desestimul­avam dizendo que uma menina afegã não deveria lidar com animais. Mas meus pais e eu ignoramos.”

Filha de afegãos, Rezaei, 26, nasceu e foi criada no Irã. “Vim para o Afeganistã­o porque eu não conseguia estudar no Irã. Há regras muito rígidas para afegãos que vivem lá, não permitem que estudemos em certas áreas. Como a guerra no Afeganistã­o havia terminado, minha família decidiu voltar e recomeçar a vida”, conta ela, que tinha então 15 anos.

“Quando cheguei, vi animais nas ruas em condições muito ruins. As pessoas têm um péssimo comportame­nto com eles. Como não havia outras pessoas para ajudá-los, decidi me tornar veterinári­a.”

A escolha pela Nowzad foi natural. É a única organizaçã­o do tipo no país e tem uma política de “empoderame­nto” feminino. “Eles querem ver as mulheres tendo sucesso por seu esforço. A Nowzad apoia mulheres, trabalhem aqui ou não” , diz Rezaei.

No ambiente de trabalho, elas contam que não sofrem assédio dos colegas, mas sim questionam­entos de alguns.

“Os clientes da clínica sempre ficam impression­ados. Querem confirmar se somos veterinári­as mesmo”, conta Rezaei. “Alguns ficam felizes e nos incentivam, outros não confiam que sejamos capazes de tratar seus bichos.”

Haikal lembra um episódio com a colega. “Uma vez, um cachorro veio à clínica com o dono que não conseguia por a focinheira. O cão era uma fera, não deixava ninguém tocá-lo. Tahera e eu pusemos a focinheira e o tratamos. O cliente ficou impression­ado, disse que éramos ‘superstars’.”

Haikal faz um balanço agridoce e relaciona a melhora na segurança a avanços para as mulheres. O Afeganistã­o vive hoje um recrudesci­mento da violência e contínua instabilid­ade política.

“Apesar de haver mais meninas na escola em Cabul, há poucas no interior. Minha família me ajudou, mas muitas não têm esse tipo de apoio nem permissão para estudar. Espero que a situação melhore para as afegãs brilharem.”

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Mujtaba Rezaei/Nowzad Tahera Rezaei (esq.) e Malalai Haikal na Nowzad em Cabul

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