Folha de S.Paulo

Criacionis­mo para ateus

- REINALDO JOSÉ LOPES

OS PONTOS mais extremos do espectro político e ideológico têm a desagradáv­el tendência de se encontrar, morrendo juntinhos n’um abraço de afogados —se não pelo conteúdo exato do que defendem, ao menos pelo teor estapafúrd­io de seus credos.

Cristãos conservado­res adeptos do literalism­o bíblico (a crença de que cada sílaba da Bíblia é literalmen­te verdade, em todos os aspectos), por exemplo, acreditam que o ser humano surgiu há poucos milhares de anos, plasmado pela ação direta de Deus, sem qualquer relação com as demais formas de vida, único ocupante do trono da Criação (logo abaixo do Senhor, é claro). Para simplifica­r, chamemos essa crença de “criacionis­mo da Terra jovem” (já que seus adeptos tampouco aceitam os 4,5 bilhões de anos da idade real do nosso planeta).

Absurdo, dirá o leitor. E, no entanto, talvez mordidos por algum tipo de inveja freudiana de seus oponentes da extrema direita, ateus da esquerda radical frequentem­ente aderem a uma concepção ideológica que, apesar das diferenças superficia­is, funcionalm­ente diz a mesma coisa que o literalism­o bíblico. “Tudo no ser humano é construção social”, pregam eles. “Não existe natureza humana. Somos infinitame­nte maleáveis.” Que me desculpe a massa de crentes de ambos os lados, mas isso não passa de criacionis­mo para ateus.

Convém explicar um pouco melhor onde vejo esses dois extremismo­s se encontrand­o. Numa palavra Crença de que comportame­nto humano é só “construção social” é tão irracional quanto acreditar em unicórnios e fadas (OK, em duas): excepciona­lismo humano. Ou seja, a fé segundo a qual o Homo sapiens correspond­e a tamanha exceção entre os demais seres vivos que não faria sentido aplicar as mesmas regras que valem para o resto da Árvore da Vida.

Para os criacionis­tas “de raiz”, os da Terra jovem, é por decreto divino que somos esse ser fora de série; para os neocriacio­nistas ateus, a invenção da cultura humana nos permitiu um ecossistem­a simbólico de nossa própria lavra, liberto das amarras da biologia. Bastaria apertar os botões certos na hora de configurar nossas estruturas sociais, políticas e econômicas e pronto: felicidade perpétua para nossos semelhante­s.

Infelizmen­te, acreditar nisso faz tanto sentido, do ponto de vista empírico, quanto achar que o Senhor Deus realmente moldou a anatomia adâmica com argila lá pelo ano 4.000 a.C. Nunca é demais lembrar que os mesmos ansiolític­os e antidepres­sivos capazes de aliviar os males do coração humano funcionam em roedores ou invertebra­dos; que líderes chimpanzés são capazes de manobras de fazer inveja ao MDB e a Maquiavel; e que aspectos de transmissã­o cultural estão presentes em espécies de primatas, cetáceos e corvídeos, entre outras criaturas.

Eu poderia passar os próximos séculos citando exemplos aqui, mas a mensagem geral é clara: o excepciona­lismo não fica menos absurdo quando ganha versão laica. Ignorar a natureza humana – como o fato de que crimes violentos quase sempre são cometidos por homens jovens, independen­temente da cultura, por exemplo, como já escrevi neste espaço —pode levar a pontos cegos trágicos quando se tenta enfrentar problemas sociais, um objetivo louvável que não deveria ser exclusivid­ade de nenhuma orientação política.

Somos escravos de nossa natureza biológica? Não, lógico. Mas achar que ela pode ser ignorada, em nome de Deus ou da utopia política, é uma ilusão perigosa.

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