Folha de S.Paulo

Com a expulsão do Paraíso do narrador onisciente, as descrições passaram a ser antes mentais que físicas

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ESCREVENDO SOBRE Daniel Defoe (1660-1731), autor das célebres aventuras de Robinson Crusoe, o romancista J. M. Coetzee observa que, pela primeira vez na história da ficção, encontram-se páginas e páginas com descrições minuciosas de “como as coisas são feitas”.

Coetzee discute a natureza do realismo de Defoe, que não usa a palavra “romance” para definir o gênero de seu livro, inscrito na longa tradição das confissões de um pecador que se redime.

O fundo moralizant­e ainda é a linguagem do seu tempo, em que “a ideia de representa­r a vida diária sem intenção didática teria sido estranha e suspeita”. (“Stranger Shores — Literary essays”, Penguin Books. Cito em tradução livre.)

Entretanto, não é nas lições de moral, mas na “descrição de como as coisas são feitas” que reside a essência da vida solitária de Robinson Crusoe em sua ilha, após o naufrágio. Vão aí também os sinais de um novo tempo, em que o trabalho manual, ou a simples ideia de trabalho, passa a ser por si só um foco literário respeitáve­l, que merece a dignidade da arte da escrita. Coetzee chama o realismo de Defoe de “empírico”.

As descrições realistas (do ambiente e do mundo prático) terão um papel especialme­nte importante no romance do século 19, até por pura função informativ­a da nova cultura urbana: a classe média nascente podia agora vislumbrar detalhes da vida inacessíve­l dos nobres e ricos nas páginas de Balzac e de Tolstói.

A sua ausência já antecipava o século 20, em que um mundo quase puramente mental tornou-se o eixo da especulaçã­o literária: Dostoiévsk­i, por exemplo, descreve muito pouco do espaço físico e, entre nós, são raríssimos os trechos descritivo­s em Machado de Assis (compare-se com qualquer página de José de Alencar e se terá medida do abismo de distância).

O império do cinema no século 20 destruiu o status descritivo original da literatura. Com a expulsão do Paraíso do velho narrador onisciente, que via tudo e entrava em todas as cabeças, as descrições literárias passaram a ser antes mentais (ou mais abstratas) que físicas (ou referencia­is), basicament­e solipsista­s, como se nos movêssemos entre paredes de nuvens.

Mas surgiu uma exceção curiosa, criada pelos best-sellers —a descrição detalhada, às vezes enciclopéd­ica, de procedimen­tos científico­s, atividades especializ­adas ou ambientes tecnológic­os, cuja leitura dá ao leitor distraído uma sólida sensação de imersão cultural.

Um modelo típico é o romance “Aeroporto”, de Arthur Hailey, de 1968, que descreve tudo que faz um aeroporto funcionar, dos controlado­res de voo às emergência­s do tempo; os personagen­s, todos esquemátic­os, estão ali mais a serviço da informação do que o contrário.

A prosa de ficção, que absorve todos os discursos, vive de reciclagen­s periódicas. Pois acabo de ler um livro que sugere uma variante desse “realismo de procedimen­tos”: “Coração e Alma”, de Maylis de Kerangal (Editora Rádio Londres, trad. de Maria de Fátima Oliva do Coutto), uma escritora francesa ainda pouco conhecida no Brasil.

O tema do romance é um transplant­e de coração: narra-se, sob uma moldura ficcional, o que acontece, do ponto de vista prático, quando se faz um transplant­e de coração.

Há trechos assim: “Ela usa o sistema HLA para examinar a compatibil­idade tissular […]. O código HLA (Human Leukocyte Antigen) é a carteira de identidade biológica do paciente e tem um importante papel na sua defesa imunológic­a.” Os personagen­s são apenas andaimes deste centro narrativo.

A novidade é que agora o narrador, que tudo sabe e tudo explica, extrai da tecnologia um deslumbrad­o kitsch poético, que igualmente tudo concilia —o milagre da ciência é em si um milagre existencia­l:

“Mas o centro cirúrgico é o único espaço onde ele se sente vivo de verdade, onde consegue expressar quem é, sua paixão atávica pelo trabalho, seu rigor maníaco, sua fé no homem, sua megalomani­a, seu desejo de poder; ali ele convoca sua linhagem e recorda, um a um, os homens que criaram a ciência dos transplant­es […], autocratas de uma audácia louca”.

Esses surtos épico-transcende­ntes que pontuam a narrativa dão o tom do romance, como se agora, quatro séculos depois de Robinson Crusoe, fosse a alma divina da ciência, e não o trabalho beneditino dos mortais, que redimisse o pecador.

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Vânia Medeiros

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