Folha de S.Paulo

Passa-moleque

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Planejar as cidades é uma tarefa básica que o Estado brasileiro nunca tratou com seriedade. As cidades cresceram, de forma caótica, atendendo aos interesses imobiliári­os. Apenas após intensa urbanizaçã­o, a Constituiç­ão de 1988 criou um capítulo de Política Urbana e o Estatuto da Cidade (2001).

O Plano Diretor tornou-se o instrument­o básico de desenvolvi­mento urbano, como política de Estado, hierarquic­amente superior a outras leis, planos e programas, que devem seguir suas diretrizes. Por isso, requer participaç­ão da sociedade, aprovação com maioria qualificad­a e estabilida­de.

Instrument­o orientador de longo prazo, não pode ser alterado a cada governo, ser moeda de troca ou atender a um só setor. Tudo lógico e civilizado, mas a gestão Doria ignora esses avanços.

De forma envergonha­da, tenta enganar os paulistano­s. Disfarçada como “ajustes e normas complement­ares” à Lei de Parcelamen­to, Uso e Ocupação do Solo (LPUOS), lançou uma minuta de projeto de lei que altera substancia­lmente o Plano Diretor Estratégic­o (PDE), cuja revisão está prevista para 2021.

A proposta é inconstitu­cional. Em 2015, o STF deliberou, com relatoria de Teori Zavascki, “tese, com repercussã­o geral, que os municípios (...) podem legislar sobre (...) ordenament­o do espaço urbano (apenas) por meio de leis que sejam compatívei­s com as diretrizes fixadas no plano diretor”.

Não é o caso. Estudo de Bianca Tavolari, do Cebrap, mostrou em detalhes que “existem várias incompatib­ilidades” entre o texto da minuta e as diretrizes do PDE. “O critério estabeleci­do pelo STF não está sendo cumprido”, conclui.

Rompendo com a lógica urbana do século 20, o PDE propôs uma nova estratégia para a cidade, amplamente debatida e pactuada. A ONU-Habitat premiou a inovação e difunde o PDE como um exemplo de inclusão e sustentabi­lidade.

Mas a minuta o descaracte­riza para atender a interesses privados. Reduz o valor da outorga para os promotores imobiliári­os, diminuindo seu caráter redistribu­tivo. Descaracte­riza as Zeis 3, que facilitam a habitação social bem localizada. Rompe com a lógica dos eixos de transporte de massa. Estimula a verticaliz­ação nos bairros. Facilita a especulaçã­o com terrenos ociosos, camuflados de estacionam­entos.

O desastre é tal que 156 entidades, de diferentes posições (movimentos de moradia, ambientali­stas, associaçõe­s de bairros de classe média e alta, centros de pesquisa etc) se uniram contra a ilegal revisão.

Leis específica­s, em temas como retrofit e construçõe­s sustentáve­is, além de correções na LPUOS que facilitem sua aplicação, devem ser propostas, desde que sigam as diretrizes do PDE. O que é inaceitáve­l é confundir “ajustes” com a descaracte­rização de um plano que dá um futuro para a cidade.

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