Folha de S.Paulo

Campos rivais criam serviços para mulheres

- DO ENVIADO A LOUISVILLE (KENTUCKY)

ENVIADO ESPECIAL A LOUISVILLE (KENTUCKY)

Uma faixa branca na calçada em frente à última clínica de aborto do Kentucky, um Estado rural e conservado­r no miolo dos EUA, funciona como um cordão de isolamento. Alertas em letras pretas maiúsculas pedem que ninguém ultrapasse aquele ponto, mas manifestan­tes atropelara­m a ordem, escrevendo por cima “Deus domina”.

Mulheres que chegam para consultas atravessam um corredor polonês de religiosos contra o aborto brandindo cartazes e terços. Alguns rezam e outros gritam que elas não vão deixar de ser “a mãe do bebê que vão matar”.

“Isso está arruinando o nosso país”, dizia a enfermeira aposentada Myrna Owen, na entrada do prédio. “Corta o meu coração saber que essas mulheres entram aqui para matar seus filhos. Elas vão se arrepender ainda, vão ter muitos pesadelos com isso.”

Um alarme agudo soa sempre que alguém passa pelas portas de metal da clínica, e uma enfermeira surge atrás do balcão protegido por um vidro blindado. Ela só deixa entrar quem tem hora marcada, e os corredores, mesmo o que leva até a sala de espera, ficam fechados o tempo todo.

O pequeno prédio no centro de Louisville, a maior cidade do Kentucky, está agora no olho do furacão de uma batalha acirrada contra o direito de interrompe­r a gravidez conquistad­o há 45 anos pelas mulheres americanas.

Outros cinco Estados do país —Dakota do Norte, Dakota do Sul, Mississipi, Virgínia Ocidental e Wyoming— também só têm uma clínica de aborto depois que várias fecharam as portas ao entrar na mira de governos regionais conservado­res, mas o Kentucky pode se tornar o primeiro deles sem nenhuma.

Faz um ano que o último centro autorizado a fazer esses atendiment­os aqui tenta continuar aberto depois de ser desafiado nos tribunais pelo governo estadual, que passou a fazer novas exigências para que a clínica opere.

Uma delas obriga médicos a realizar um ultrassom antes da cirurgia e deixar que a mulher escute os batimentos cardíacos do bebê, na tentativa de demovê-la. Outra exige que as clínicas tenham acordos de remoção e transporte de pacientes para hospitais em casos de emergên- cia, o que todo centro médico já precisa fazer por lei.

“Todo o sistema está armado para dissuadir a mulher de abortar e seguir adiante com uma gravidez indesejada em vez de escolher o que é melhor para ela”, diz Elizabeth Nash, especialis­ta em legislação sobre o aborto neste país onde cada Estado pode elaborar regras diferentes, criando o que ela chama de “colcha de retalhos” jurídica.

O cerco ao aborto, alvo de mais de 400 novas restrições em 33 Estados ao longo dos últimos sete anos, vem se fechando cada vez mais desde que Donald Trump assumiu o comando da Casa Branca.

Mesmo que o governo federal não possa se intrometer na questão, o presidente vem apontando juízes ultraconse­rvadores para postos nos principais tribunais, podendo alterar a interpreta­ção da lei até na Suprema Corte e, temem os oponentes, abrir o caminho para uma eventual extinção do aborto.

“Temos um governo federal muito hostil ao aborto e a possibilid­ade de ver medidas restritiva­s avançarem no Congresso”, diz Nash. “Essas são as novas camadas da cebola de regras para acabar com a prestação desses serviços.”

Mas enquanto juízes debatem os limites da lei, a temperatur­a sobe em Louisville, onde a decisão sobre o destino de sua última clínica pode sair a qualquer momento.

No ano passado, numa das manifestaç­ões mais veementes desde a década de 1990, o pastor Joseph Spurgeon, que lidera protestos no Kentucky, levou fiéis para bloquear a entrada da clínica e distri- buiu panfletos com retratos de seus médicos e enfermeiro­s na mira de um fuzil.

“Expor essas pessoas é um ato de Deus, é para que tenham vergonha do que fazem”, diz o pastor. “Eles é que estão cortando crianças em pedacinhos e jogando no lixo. Depois ficam zangados que contamos o que eles fazem, mostramos as fotos. Todo aborto é um assassinat­o.”

Rusty Thomas, líder da Operação Salve a América, um grupo antiaborto com sede no Texas e tentáculos por todo o país, também se juntou a Spurgeon e tem vindo a Louisville para os protestos.

“Estamos tentando salvar vidas enquanto eles derramam o sangue inocente”, diz Thomas, que chama a clínica de “campo de concentraç­ão” e “usina da morte”. “Eles são os criminosos, os terrorista­s, os caras do mal e perigosos que deveriam ser temidos.”

Mas mulheres que decidiram abortar também temem esses manifestan­tes. Cheyenne, mulher do agente penitenciá­rio Brandon Johnson, foi insultada na entrada da clínica, contou o marido, que a esperava do lado de fora.

“Eles partem para cima mesmo, gritaram com ela quando nem sabem da nossa situação”, disse Johnson. “Eles acham que somos contra crianças, mas não sabem como foi difícil tomar essa decisão. Também não é fácil saber que eu não vou mais ser pai daqui a pouco, e esse pensamento vai me assombrar.”

O clima agressivo nos arredores da clínica levou ao surgimento de voluntário­s que escoltam pacientes até a porta para evitar confrontos.

Meg Stern, que também dirige um fundo de apoio a mulheres que precisam de dinheiro para pagar pelo aborto ou de ajuda com transporte, hospedagem e tradução do inglês para outras línguas, está entre esses voluntário­s.

“Sou perseguida por fazer esse trabalho. Já fui agredida e sou treinada para saber quando alguém está me seguindo”, ela diz, logo depois de deixar a clínica.

“É muito estressant­e e assustador. Não tenho vergonha de ser uma ativista, mas o povo nessa parte do país só ajuda a perpetuar o estigma do aborto.”

Não é só do lado de fora da clínica que mulheres que decidiram pelo aborto em Louisville vêm buscando apoio.

O trauma associado ao término da gravidez agravado pela fúria dos manifestan­tes fez surgir aqui um movimento de “parteiras do aborto”.

Elas são doulas, como são chamadas as mulheres que tranquiliz­am futuras mães na hora de dar à luz, que ficam na sala de cirurgia durante a remoção do feto.

“Estamos ali para dar ouvido à pessoa grávida, segurar a mão, ajudar com a respiração, e isso envolve também a perda do bebê”, diz Liz Trantanell­a, fundadora do projeto.

“Mesmo que tenha refletido bastante e esteja confiante no que quer fazer, essa não deixa de ser uma experiênci­a muito traumática.”

O primeiro grupo desse tipo nos EUA surgiu em Nova York, onde leis de aborto são mais flexíveis e a prática não desperta protestos como os de Louisville. Inspirada nele, Trantanell­a decidiu levar a ideia para a sua cidade num momento em que vários Estados do país tentam limitar a ação dessas clínicas.

Mas enquanto “parteiras do aborto” se espalham pelo país, grupos contra a interrupçã­o da gravidez abrem suas próprias clínicas para convencer quem quer abortar a mudar de ideia.

São espaços que usam linguagem ambígua, dando a entender em suas fachadas que são clínicas de aborto. Do lado de dentro, no entanto, há pilhas e pilhas de panfletos contra a prática, muitos com discursos agressivos e de natureza religiosa.

No prédio ao lado do centro cirúrgico em Louisville, uma delas oferece ultrassons e sessões de terapia de graça para que mulheres ouçam batimentos cardíacos do bebê que abortariam.

Uma dessas mulheres que acabou não seguindo adiante com o aborto, Chelsea Pickett conta que tudo mudou quando fez um ultrassom ali.

“Estava estressada e tendo pensamento­s suicidas. Mas aí ouvi o coração do bebê. Lembrei que nunca concordei com a ideia de um aborto em toda a minha vida, que eram os hormônios falando. Quando eu puder, quero estar naquela calçada me manifestan­do também, ajudando todas essas mulheres a não tomar essa decisão.”(SM)

Ativistas contra e a favor do aborto fazem batalha de cartazes diante do Congresso americano, em Washington

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Alex Wong - 19.jan.2018/Getty Images/AFP
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Andrew Harnik - 19.jan.2018/Associated Press Mulher leva terço, Bíblia e cartaz antiaborto em protesto

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