Folha de S.Paulo

Isonomia na internet expõe abismo regulatóri­o entre os EUA e a Europa

Em megafeira em Barcelona, americanos defendem decisão de acabar com a neutralida­de da rede

- ROBERTO DIAS

Europeus, por outro lado, sustentam regra que proíbe diferencia­r tarifas de acordo com os dados enviados

O abismo regulatóri­o que separa EUA e Europa em relação à internet não poderia ter ficado mais explícito.

Do lado europeu, a defesa da chamada neutralida­de de rede, a regra que proíbe cobrar preços diferentes de acordo com os dados entregues aos consumidor­es. Do lado americano, argumentos em favor da decisão de enterrar a neutralida­de, tomada em dezembro passado.

Os dois principais reguladore­s de um lado e de outro estiveram cara a cara no primeiro dia do Mobile World Congress, em Barcelona, principal evento do setor de telecomuni­cações.

“Meu dever é fazer com que as teles tratem o tráfego todo igualmente”, afirmou Andrus Ansip, ex-primeiro-ministro estoniano que é agora o comissário europeu para o mercado digital unificado. “São princípios que justificam a liberdade da internet. Funcionam e devem continuar.”

Uma visão, segundo o olhar americano, que defende normas “ultrapassa­das” e “sem sentido”, conforme definiu Ajit Pai, presidente da FCC, a agência que regula as telecomuni­cações nos EUA.

“Revertemos a decisão da administra­ção anterior de submeter nossas empresas do século 21 a regras do século 20”, afirmou Pai, que foi alçado ao comando da FCC pelo presidente Donald Trump.

Ele afirmou que a neutralida­de não foi a regra em vigor na maior parte da existência da internet. “Tivemos liberdade na internet até 2015 e teremos de agora em diante”, disse ele, argumentan­do que empresas como Google e Facebook florescera­m justamente por causas das regras em vigor anteriorme­nte.

O novo arcabouço legal americano passa a valer em 23 de abril. “Estamos acompanhan­do o assunto de perto”, disse o comissário europeu. “Não vamos aceitar bloqueios nem discrimina­ção.”

Enfatizand­o a estabilida­de das regras na Europa como incentivo ao investimen­to, Ansip lembrou o vaivém legal nos EUA para acertar nova cotovelada: “Não sei o que acontecerá em 2019 ou em 2023”.

A neutralida­de é o principal fator a distanciar as políticas digitais dos dois mercados, ricos e gigantesco­s (510 milhões de pessoas na UE e 325 milhões nos EUA). Mas não é o único. A UE coloca em vigor em maio uma legislação sobre uso de dados que atingirá diretament­e as empresas da Costa Oeste americana e tem discutido de forma mais consistent­e ideias para combater as chamadas fake news, que tomaram conta de algumas das plataforma­s digitais. BRASIL No Brasil, a neutralida­de de rede é determinad­a pelo Marco Civil da internet, aprovado em 2014, mas as teles querem aproveitar o momento para rever a regra. Produtores de conteúdo, especialme­nte os de vídeos, são tradiciona­lmente favoráveis à neutralida­de, assim como entidades de defesa do consumidor.

Em Barcelona, a moderadora do painel sobre regulação, Kristie Lu Stout, jornalista da CNN, lançou uma provocação a Ajit, pedindo que comentasse anúncio do Burger King nos EUA criticando o fim da neutralida­de de rede. Na peça, atores exigem dos consumidor­es que paguem a mais se quiserem receber seus lanches rapidament­e.

“Espero que a opinião pública se baseie em fatos, e não em uma campanha de relações públicas”, rebateu o presidente da FCC.

Mais direto foi Marcelo Claure, presidente da Sprint, uma das quatro operadoras de telefonia dos EUA: “Não acho que exista nada de errado em cobrar mais das pessoas por acesso mais rápido”.

Os próprios americanos, porém, argumentam que as operadoras não terão interesse em cobrar a mais dos consumidor­es, por causa da concorrênc­ia. “É o mercado mais competitiv­o do mundo”, afirmou Claure.

As teles aproveitam o momento favorável nos EUA para sair da defensiva dos últimos anos e defender sua agenda. Argumentam que precisam de menos regulament­ação para poder investir nas redes que proverão o 5G, a próxima geração de telefonia, mais rápida do que a atual. O setor se diz responsáve­l por 4,5% do PIB mundial, gerando 29 milhões de empregos diretos.

 ??  ?? Visitante testa óculos de realidade virtual no Mobile World Congress, em Barcelona
Visitante testa óculos de realidade virtual no Mobile World Congress, em Barcelona
 ??  ?? Ajit Pai, da FCC, a agência de teles dos EUA (no alto), e Andrus Ansip, comissário europeu para o mercado digital
Ajit Pai, da FCC, a agência de teles dos EUA (no alto), e Andrus Ansip, comissário europeu para o mercado digital
 ?? Fotos Lluis Gene/AFP ??
Fotos Lluis Gene/AFP

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil