Folha de S.Paulo

AMOR DEPOIS DO LUTO

Viúvo e viúva de autores de best-sellers sobre o fim da vida com câncer se conhecem e ficam juntos

- ANNA VIRGINIA BALLOUSSIE­R

Você encontra sua alma gêmea, tem filhos e vive com ela na saúde e na doença, até que a morte os separe. Foi assim com Lucy, foi assim com John. Só que a morte, em seus lares, chegou cedo demais e virou um luto público, já que o marido dela e a mulher dele registrara­m as respectiva­s batalhas contra o câncer em best-sellers publicados postumamen­te.

Foi então que Lucy Kalanithi e John Duberstein se conheceram. E se apaixonara­m.

“No verão, ao telefone, Lucy estava nervosa mas animada para contar as novidades: ‘Conheci alguém. O nome dele é John’”, narrou a irmã gêmea da viúva, Joanna Goddard, num post de seu blog “A Cup of Jo”, em janeiro.

A esposa de John, uma poeta chamada Nina Riggs, também morrera de câncer e escrevera uma memória durante seus últimos dias.

Lucy ficou sabendo da obra e enviou um e-mail à autora. “Eu li alto para Nina, que morreria 48 horas depois”, John relatou num texto publicado na internet. “Dizia simplesmen­te: ‘Seus escritos são extraordin­ários. Na minha opinião, isso quer dizer que sua alma também é. Da sua fã eterna, Lucy’.”

A orelha do primeiro e último livro de Paul Kalanithi o descreve com verbos no passado: aquele que “foi” neurocirur­gião e escritor. Quando, aos 36, descobriu um tipo de câncer de pulmão que afetava 0,0012% das pessoas com a sua idade, o americano filho de indianos começou a escrever “O Último Sopro de Vida” (Sextante, 2016). PASSADO, FUTURO Na obra, que ficou 66 semanas na lista de mais vendidos do “New York Times”, já refletia: “Em que tempo verbal eu estaria existindo agora? Terei prosseguid­o além do presente para o pretérito perfeito? O tempo futuro parece vago”.

Paul morreu em 2016, ficaram a viúva Lucy e a filha deles, Cady, que completava dez meses quando o pai morreu.

Nina Riggs tinha 39, dois a mais do que ele, quando morreu por causa de um câncer de mama, na manhã (sua parte preferida do dia) do dia 26 de fevereiro de 2017. Como Paul, a professora e poeta, mãe de crianças de 8 e 10 anos, também lançou um livro postumamen­te , “The Bright Hour” (a hora clara, em tradução livre).

Em maio de 2016, Lucy, professora-assistente do curso de medicina da Universida­de Stanford, conversou com a Folha sobre o luto, “algo em geral solitário”. Não para ela.

“Para muita gente, é raro ouvir o nome de alguém que perdeu. Comigo é o contrário. Todos que encontro querem falar sobre Paul. Achei que não seria, mas isso é ótimo. Catorze meses [desde a morte] parece muito tempo, exceto quando seu marido morre.”

Um ano depois, aproximous­e do recém-viúvo Paul. No começo de 2018, contou ao “Washington Post” sobre a relação em que “tudo parecia bizarro demais para se encaixar.” Mas encaixou. “Estou surpresa em quão ridículo e natural é ao mesmo tempo.”

Nos dias finais de sua vida, Nina se inquietou: como o marido superaria sua morte? Sugeriu que contatasse Lucy. Ela tinha experiênci­a no assunto.

Doente, em lágrimas, fez o marido prometer que “estaria aberto a achar outros relacionam­entos” e “não fazer vasectomia”, John recorda. ‘A HORA CLARA’ A “hora clara” a que Nina se refere no título de seu livro veio de uma citação de outro poeta, Ralph Waldo Emerson, como ela contou numa entrevista que deu ao “WP” antes de morrer e que só foi publicada depois.

“É sobre a experiênci­a de apreender a manhã. É um lugar-comum às vezes, mas [Emerson] afirma que não importa quantas vezes a manhã já foi descrita por Shakespear­e, Homero, John Milton, essa experiênci­a sempre será estranha se vivida apenas por meio do verso de outra pessoa.”

Dois dias após Nina morrer, John mandou um e-mail para Lucy —que descreveu a mensagem como “obscenamen­te vulnerável”. Tudo amargurava o advogado, de não conseguir dormir à elegia que precisava escrever para a mulher.

“Enviei um e-mail com títulos em negrito para várias das minhas preocupaçõ­es: “amigos”, “trabalho”, “lidar com o sofrimento” e “como não enlouquece­r”, rememora ele.

Passaram a trocar e-mails, centenas deles, e até zombaram o grupo de Facebook “Hot Young Widows Club” (clube das jovens viúvas gostosas). Os filhos de John e Nina, Freddy, 10, e Benny, 10, conheceram a filha de Lucy e Paul, Cady, 3.

Iniciar uma nova relação é, de certa forma, aceitar perder em parte a anterior, e isso doía em ambos. Se você “tiver sorte” de ter encontrado a pessoa certa, afinal, não terá outra escolha a não ser “ficar arrasado quando [seu parceiro] morrer”, afirma Lucy.

Sua irmã gêmea blogueira conta que inicialmen­te se preocupou com o novo casal, mas logo viu que não era preciso.

“Percebi que você pode se apaixonar por alguém e sofrer por outra ao mesmo tempo.” Joanna lembra de palavras de John: “Nunca diria que isso é verdade até passar pela experiênci­a. Não é tragédia ou alegria. São ambos”.

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Amy Osborne/“The Washington Post” John Duberstein e Lucy Kalanithi em San Mateo, na Califórnia; a mulher dele, Nina Riggs, escreveu “The Bright Hour”; o marido de Lucy, Paul Kalanithi, “O Último Sopro de Vida”
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Livros publicados pelos autores Nina Riggs e Paul Kalanithi

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