Folha de S.Paulo

Qualquer forma de política ‘carismátic­a’ é um perigo brutal para a sobrevivên­cia das democracia­s liberais

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LUCIANO HUCK para presidente? Ele diz que não. Acredito. Mas, se a decisão fosse outra, o Brasil estaria na vanguarda das democracia­s ocidentais —e Fernando Henrique Cardoso percebeu isso.

Anos atrás, na revista “Foreign Policy”, FHC publicou um bom artigo sobre o futuro dos partidos políticos. “Futuro”, vírgula: FHC não acreditava que houvesse futuro para os partidos. As tradiciona­is divisões ideológica­s entre esquerda e direita já não tinham o mesmo significad­o —e a mesma militância.

E, além disso, a desilusão do eleitorado com o “establishm­ent” faria emergir movimentos, grupos, “populistas” (termo meu, não de FHC) capazes de rivalizar com as estruturas decrépitas e assaz rígidas dos partidos. Fernando Henrique foi um visionário.

Claro: existe uma diferença entre mim e FHC. Para ele, essa nova realidade extraparti­dária não parece ser um mal em si, sobretudo se os partidos não se souberem recriar para responder aos desafios do presente. O entusiasmo de FHC com Huck demonstra isso: o apresentad­or “areja”, “põe em xeque os partidos”, afirmou o ex-presidente.

Para mim, qualquer forma de política “carismátic­a” representa sempre um perigo brutal para a sobrevivên­cia das democracia­s liberais e das suas instituiçõ­es. Mas admito que o “espírito do tempo” está mais próximo de FHC.

E mais próximo de Luciano Huck, já agora. Um exemplo: a revista “The Spectator” publicou um ensaio revelador sobre os possíveis candidatos democratas para as eleições norteameri­canas de 2020. Não perco tempo com nomes menores. Prefiro avançar para os nomes maiores, que aliás surgem na capa da revista: Oprah Winfrey, Tom Hanks, George Clooney. O que têm os três em comum?

Sim, créditos progressis­tas imaculados. Mas o essencial não está na ideologia. Está na celebridad­e: os três são produtos da indústria de entretenim­ento. Exatamente como Donald Trump. A lógica é fulminante: se Donald Trump foi um produto midiático de sucesso, é preciso responder na mesma moeda.

Essa hipótese arrepia a minha costela platônica —e escrevo “platônica” no sentido próprio do tempo. Se existe uma ideia consensual na história da política moderna é a velha crença de que os melhores devem governar, como Platão defendia na sua “República”.

Bem sei que a realidade nem sempre cumpre o ideal. Mas o ideal não existe para ser cumprido. Existe, quando muito, para que a realidade se aproxime dele.

Dito de outra forma: se a política é, ou deve ser, a mais nobre das artes, então espera-se de um governante algumas virtudes que exigem preparação e conhecimen­to.

Tudo isso está em causa nas “democracia­s midiáticas” em que vivemos. Não são os melhores que vencem; os melhores são aqueles que vendem. E vendem o quê? Uma imagem que correspond­e às preferênci­as voláteis e sentimenta­is dos consumidor­es.

Quando os democratas cogitam a hipótese de um George Clooney para a Casa Branca, ninguém perde um minuto para indagar as ideias do senhor. Ideias? Quais ideias? O que interessa é o sorriso, o olhar, o traje e dezenas de outras imbecilida­des avulsas. As democracia­s midiáticas não querem políticos, mas estrelas pop. E no futuro? Não pretendo horrorizar ninguém. Mas imagino facilmente dois cenários.

O primeiro seria transforma­r os partidos políticos em organizaçõ­es muito semelhante­s às agências de modelos. Haveria o “estilista” ideológico —alguém responsáve­l por um programa eleitoral mais ou menos clássico; e, depois, haveria o candidato-modelo para desfilar na “passerelle” dos comícios e dos debates.

O candidato-modelo seria apenas uma máscara, uma marionete do partido, com a única missão de apaixonar as massas. Uma vez eleito, ele continuari­a o seu trabalho de fachada, deixando para os comuns mortais a mecânica burocrátic­a do governo.

Outro caminho seria acabar com os partidos e, por exemplo, criar um show televisivo —um “Big Brother Brasília”, digamos. Nesse caso, seriam as massas a escolher diretament­e o presidente, depois de assistirem às suas proezas em sunga ou biquíni.

Hoje, olhamos para Donald Trump ou Oprah Winfrey como excentrici­dades. Dois nomes que representa­m o triunfo do entretenim­ento sobre a política.

Amanhã, quando o dilúvio chegar, ainda vamos olhar para trás e recordar Trump ou Oprah como os últimos grandes estadistas.

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Ângelo Abu

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