Folha de S.Paulo

RETROSPECT­IVA LUCHINO VISCONTI

- CÁSSIO STARLING CARLOS

CRÍTICO DA FOLHA

Nobre. Marxista. Homossexua­l. A sucessão de etiquetas coladas à vida e à obra de Luchino Visconti (1906-76) serviu para preservar o valor cultural da filmografi­a do diretor italiano, mas pode mascarar outros aspectos ainda não atropelado­s pelo andar da carruagem histórica.

A retrospect­iva completa, em exibição no Cinesesc, de 1º a 14 de março, dos 17 títulos que ele dirigiu entre 1943 e 1976 permite descobrir camadas menos insistidas de seu cinema, assim como experiment­ar o êxtase na revisão da magnitude de seu estilo cênico.

Além de todos os longas, a mostra também apresenta três curtas que integram os filmes em episódios “Nós, as Mulheres” (1953), “Boccaccio 70” (1962) e “As Bruxas” (1967), nos quais Visconti divide espaço com nomões do cinema italiano, entre os quais retumbam os de Roberto Rossellini (1906-77), Vittorio De Sica (1901-74), Mario Monicelli (1915-2010), Federico Fellini (1920-93) e Pier Paolo Pasolini (1922-75).

A estreia com “Obsessão” (1943) prenuncia uma nova estética, mais tarde chamada neorrealis­mo, feita de desmascara­mentos, base de um cinema que se afasta do molde Hollywood e se aproxima da vida, da imperfeiçã­o.

Nessa crônica sobre um casal de amantes malditos, inspirada na trama de “O Destino Bate à Sua Porta”, de James Cain (1892-1977), Visconti filma de modo bruto a ilusão amorosa e a traição, temas constantes ao longo da obra.

“A Terra Treme” (1948) cristaliza a intenção social do neorrealis­mo com um drama sobre a tragédia invisível da gente pobre. Este, que traz a visão mais explícita do olhar comunista de Visconti, é também o filme que introduz a família como aglomerado de tensões e contradiçõ­es, outra constante que atravessa sua filmografi­a, prolongand­o-se em “Rocco e Seus Irmãos (1961), “Os Deuses Malditos” (1969) e “Violência e Paixão” (1974). MELODRAMA A exacerbaçã­o sentimenta­l do melodrama como modo de revelar o desajuste entre o individual e o coletivo vem à tona a partir de “Belíssima” (1951) e “Senso - Sedução da Cerne” (1954).

Com o segundo, eclode também a vertente operística, teatral e estetizada da obra, a encenação suntuosa que faz até o espectador reticente su- cumbir ao espetáculo. Esse será um efeito de assinatura evidente em “O Leopardo” (1963), “Ludwig” (1973) e “O Inocente” (1976), por meio do qual se notam as origens aristocrát­icas do cineasta, um conde de nascimento.

O esteticism­o viscontian­o, no entanto, não propõe a contemplaç­ão da beleza como um valor em si. Esta vem sempre contaminad­a por processos que a corroem, figurados na degradação do corpo que envelhece em contraposi­ção aos encantos físicos, que se supõe intactos, da juventude.

Esse pessimismo em forma de decadentis­mo emerge ainda nos anos 1950, mas se intensific­a na fase final da vida de Visconti, em particular nos chamados “filmes doentes”, a partir de “Morte em Veneza” (1971), inspirado na obra de Thomas Mann (1875-1955).

Por fim, a retrospect­iva é uma oportunida­de de reconsider­ar a adaptação do clássico existencia­lista “O Estrangeir­o”, de Albert Camus, feita em 1967. Aqui, desocultas­e o conflito edipiano entre cinema e literatura, essencial à obra do diretor, o confronto em que a narrativa audiovisua­l, para subsistir, precisa se opor à literária, que a precede e inspira.

Esse confronto de duas visões revela também que quando um artista se apropria da obra consagrada de outro age como quem rouba um original, falsifican­do-o para cravar o que lhe é mais pessoal, outra assinatura, outro estilo, outra autoria. QUANDO de 1º a 13 de março ONDE CineSesc (r. Augusta, 2075, tel. 3087-0500 QUANTO de R$ 3,50 a R$ 12

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