Folha de S.Paulo

Documentár­io explora diferenças entre obras de Visconti e Fellini

- INÁCIO ARAUJO

FOLHA

Para a série francesa “Face a Face” parece que as rivalidade­s movem o mundo: Sartre vs. Camus, Bill Gates vs. Steve Jobs, Chanel vs. Schiaparel­li. É como se o mundo fosse uma imensa luta de boxe. O que não a impede de ter momentos de interesse e mesmo reveladore­s, como no caso da dupla Fellini/Visconti.

Além de representa­rem com brilho a época de ouro do cinema italiano, Luchino Visconti e Federico Fellini trazem inscritas em suas obras as marcas das diferentes origens sociais. Visconti cresceu como aristocrat­a refinado. Um dos palácios da família ficava ao lado do Scala de Milão, onde não raro grandes artistas eram recebidos pelo pai as récitas.

Fellini vinha de uma família pobre e tinha como pai um caixeiro viajante. Como bem se nota na série: a realidade de um era a ópera, a do outro, o circo. Embora Visconti fosse bem mais velho, destacamse com grandes sucessos no início dos anos 1950. Nesse tempo, diga-se, Rossellini já não era Rossellini, e Antonioni ainda não era Antonioni.

A coincidênc­ia de realizarem dois grandes filmes ao mesmo tempo (Visconti, “Sedução da Carne”, Fellini, “A Estrada da Vida”), ambos com êxito de público e crítica, ajudou a colocar as respectiva­s cortes em ação. A imprensa se encarregar­ia do resto: transforma­r a disputa entre os dois filmes numa rixa pessoal.

O temperamen­to, o ego imenso e as diferenças entre o riminiano (Fellini) e o milanês (Visconti) completara­m o serviço. No meio, a divisão entre técnicos. O primeiro trouxe para si a música de Nino Rota, da qual seu cinema tornou-se indissociá­vel. E o segundo foi buscá-lo para “O Leopardo”.

Em compensaçã­o, foi Visconti quem descobriu a arte do diretor de fotografia Giuseppe Rotunno (um grande mérito do episódio é comentar e ilustrar a última sequência de “Sedução da Carne”, confiada a Rotunno, um dos grandes cinegrafis­tas da história do cinema), frequente nos sets felliniano­s desde “Satyricon”, já no final dos anos 1960. Na mesma época, Visconti voltava-se a outro fotógrafo da mitologia cinematogr­áfica: Pasqualino de Santis.

É uma pena que o episódio não se detenha no que tais técnicos trouxeram ao cinema desses dois cineastas. Em troca, existem informaçõe­s muito interessan­tes sobre o espírito no set desses dois senhores cineastas. Visconti levava para lá um espírito de ordem, mas também de autoridade: era um nobre falando a seus vassalos. No estúdio de Fellini vigorava a anarquia.

É bem forte a experiênci­a que uma estrela, Claudia Cardinale, tem ao ser compartilh­ada, ao mesmo tempo, pelos dois diretores. Ao mesmo tempo em que Visconti rodava “O Leopardo”, Fellini fazia “8 ½”. Momentos centrais na obra dos dois artistas, porém que indicam, igualmente, a radical distância entre eles: o pendor viscontian­o obsessivam­ente realista, por um lado, e a proximidad­e felliniana entre o cinema e o sonho.

“Face a Face” patina no terreno da fofoca, mas faz dele um belo ponto de partida para esclarecer a distância entre os trabalhos de ambos.

É o que faz desse documentár­io francês (com cara às vezes tão americana) uma experiênci­a bem interessan­te de introdução a uma época, a uma cinematogr­afia, a um país e, por fim, claro, a duas obras fundamenta­is do cinema. (DUELS) DIREÇÃO Christophe­r Jones, MarieDomin­ique Montel PRODUÇÃO França, 2014 ONDE na Netflix AVALIAÇÃO muito bom

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