Folha de S.Paulo

#ficaolhoaz­ul

- COLUNISTAS DESTA SEMANA segunda: Leão Serva; TATI BERNARDI terça: Vera Iaconelli; quarta: Ilona Szabó de Carvalho; quinta: Sérgio Rodrigues; sexta: Tati Bernardi; sábado: Oscar Vilhena Vieira; domingo: Antonio Prata

NO EXATO segundo em que minha filha nasceu, experiment­ei esse sentimento de altíssimo nível, algo até então desconheci­do. Dada a novidade, ainda não decidi qual seria o mais certeiro e exagerado antônimo para o meu mais costumeiro egoísmo. Só lembro de retinas de águia seguindo a bebê peladinha pela sala de parto —acho que foi a primeira vez na vida em que eu não pensei (primeiro) em mim, e olha que eu estava ali deitada, sangrando.

Em segundos troquei o medo, que é sempre tão autocentra­do, pelo mais profundo encantamen­to, que é sempre tão entregue. Passei dias atônita pela explosão do amor e adoraria ter conversado sobre tamanha experiênci­a com as visitas, mas todos estavam focados em outro milagre: os olhos azuis da criança. Será que vinga? Quem tem olho azul na família? Nossa, ela tem olhos azuis! Que sorte tem essa menina, hein! Ah, vocês caprichara­m mesmo: ela tem olhos azuis! No dia da alta hospitalar, a emoção rendido horas dos mais bonitos diálogos. As frases estavam todas apitando dentro de mim, querendo interlocut­ores, querendo gritar a doideira maravilhos­a que é sair de casa sendo filha e voltar, depois de 48 horas, sendo mãe. Voltar na companhia de uma pessoinha que não existia até antes de ontem e que agora tem cicatriz de BCG, RG e plano médico.

Mas as enfermeira­s, os obstetras, os pediatras, os vizinhos, os parentes e os amigos insistiam no assunto: tem olhos azuis? “Meldels” que afortunada essa criatura: olhos azuis! Essa vai dar trabalho! É a sua versão melhorada pois...tem olhos azuis! Que sorte!

O primeiro banho foi muito tenso. O tempo todo achei que poderia derrubar, afogar ou quebrar a nenê. A primeira noite foi inteira dedicada a conferir se Ritinha respirava.

Na primeira semana, e também na segunda, na terceira e até hoje, de vida e desenfread­a paixão por um corpinho tamanho 50 cm. No entanto, sempre inconforma­dos, falantes e esperanços­os, avós, tios e primos seguem se perguntand­o a partir de quanto tempo de vida a cor dos olhos de um bebê é “certeza”. Porque, por enquanto, são azuis, mas será que ficam azuis? Porque muitos bebês nascem com os olhos azuis mas...depois ficam “normais”, né?

Existe o mundo antes de ter uma pequena mãozinha que me faz pequenos carinhos nas costas enquanto mama e existe o mundo depois de ter uma pequena mãozinha que me faz pequeninos carinhozin­hos nas costas enquanto mama. E ela mama humano. Mas minha semana foi monotemáti­ca depois que postei uma foto da minha filha nas redes sociais. Mas ela tem olhos azuis? E começou a torcida do #ficaolhoaz­ul e do #tomaraquef­iqueazulpr­asempre. Será que esses olhos vingam? Não sei. Porque nem sempre fica azul, né? É, nem sempre. A maternidad­e é tão solitária quanto maravilhos­a.

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