Justiça absolve pai inocentado de abuso sexual pelos 2 filhos
Irmãos dizem que apanharam quando crianças para mentir e denunciar pai
Adultos, eles mudaram teor dos depoimentos e foram à Justiça para pedir libertação; caso foi assumido por ONG
O Tribunal de Justiça de São Paulo absolveu nesta quinta-feira (1º) o vendedor Atercino Ferreira de Lima, 51, da acusação de abuso sexual contra seus dois filhos. Ele havia sido condenado a 27 anos de prisão e cumpria pena na penitenciária de Guarulhos (Grande SP).
O caso, revelado pela Folha, ganhou repercussão quando os próprios filhos resolveram mudar o teor de seus depoimentos. Em 2017, eles disseram à Justiça que na época da denúncia, quando tinham seis e dez anos, mentiram sob ordens, em meio a espancamentos, de uma amiga da ex-mulher de Atercino, com quem moravam.
De 2004, ano da denúncia, a 2017, o vendedor apresentou diversos recursos em liberdade, até ser preso quando estava em seu local de trabalho, em abril do ano passado.
Nesta quinta, o 7º Grupo de Câmaras do tribunal paulista seguiu o voto do relator, o desembargador França Carvalho, e decidiu, de forma unânime, pela absolvição de Atercino sob a alegação de que a retratação das então vítimas era suficiente para a revisão da condenação. Ainda cabe recurso da decisão.
O pedido de revisão criminal analisado pelo TJ paulista foi o primeiro caso apresentado à Justiça pela organização não governamental Innocence Project Brasil, criada em 2016 por um grupo de advogados criminalistas de São Paulo que presta assessoria jurídica a pessoas vítimas de erro judicial.
No momento, a Innocence Project analisa 56 pedidos de assistência advindos de todas as regiões do país.
Segundo a advogada Dora Cavalcanti, fundadora da ONG, o recurso de Atercino avançou ao levantar novos depoimentos e um laudo psicológico que refutou a possibilidade de os irmãos terem sido abusados pelo condenado.
“Foi um caso que a gente estudou muito. Tivemos desde o início a certeza de que se tratava de um erro judicial em que essas crianças, hoje adultas, foram coagidas e forçadas a criar essa ficção.”
Em agosto, os irmãos sentaram-se em frente a uma câmera e, na presença do juiz da 4ª Vara Criminal de Guarulhos (SP) e de um membro do Ministério Público, reafirmaram a inocência do pai.
Descreveram torturas supostamente praticadas pela amiga da mãe, como ajoelhar em grão de milho e espancamento com cabo de vassoura.
A violência era tanta, diz o filho mais velho, Andrey Camilo Lima, 24, que ele fugiu de casa algumas vezes para ir morar em abrigos. MELHOR DIA Andrey tentava ser ouvido pela Justiça para livrar o pai da acusação desde 2012. Nesta quinta, ele comemorou o resultado. “Foi o melhor dia da minha vida. Em meio a tanto termo técnico, eu só entendi que ele foi absolvido quando todo mundo começou a se abraçar. A única coisa que eu quero agora é dar um abraço nele aqui fora.”
Na primeira ida ao TJ-SP, Andrey tentou falar pessoalmente com os desembargadores que analisavam um recurso da defesa do pai, mas seu depoimento foi rejeitado porque os juízes entenderam que não seria juridicamente possível ouvi-lo naquela fase.
Após a recusa, Andrey registrou uma declaração pública em cartório na qual afirma que “nunca” sofreu abuso de seu pai e que foi instado a mentir à polícia. Em 2015, aos 18 anos, a irmã, Aline, fez declaração semelhante.
Em 2014, o caso chegou ao STF (Supremo Tribunal Federal), mas a relatora Rosa Weber rechaçou o pedido, mencionando súmula que veta, “em recurso extraordinário, reexaminar fatos e provas”.
Os advogados da Innocent Project encontraram uma série de pontos estranhos e mal explicados —como laudos de corpo de delito que descartavam “conjunção carnal”. ORIGEM DA DENÚNCIA A história da condenação de Atercino remonta a 2002. Após uma década de casamento, ele e sua mulher, uma assistente comercial, se separaram. Ela foi morar com sua amiga e os filhos. Atercino casou-se novamente.
Em dezembro de 2003, as crianças foram levadas pelas duas mulheres a uma delegacia. Aos policiais e uma psicóloga, disseram ter sido vítimas de abuso pelo pai, antes da separação. A Promotoria pediu a condenação de Atercino a 45 anos de prisão. Arrolou como testemunhas apenas as crianças, a mãe e sua amiga.
A Folha procurou o Ministério Público para saber se o órgão pretende recorrer, mas não obteve resposta.
A família da mulher que teria agredido os irmãos nos anos 2000 não foi localizada. Antes, disse que só prestaria esclarecimentos à Justiça.
Atercino será posto em liberdade assim que o alvará de soltura for expedido. “Ele vai voltar para casa e se restabelecer”, disse a filha, Aline.