ANÁLISE Decisão põe fim a ‘loteria judicial’ em casos de identidade de gênero
DE BRASÍLIA
Por unanimidade, o STF (Supremo Tribunal Federal) decidiu nesta quinta (1º) que é possível mudar o sexo no registro civil sem necessidade de a pessoa fazer cirurgia de mudança de sexo e sem autorização judicial. A mudança poderá ser feita em cartório.
Além disso, transexuais e transgêneros podem pedir para mudar o nome e o gênero sem precisar passar por avaliação médica ou psicológica.
Os ministros definiram que não há idade mínima para que alguém esteja apto a mudar o registro. A ação foi ajuizada pela Procuradoria Geral da República em 2009.
De acordo com a PGR, o direito fundamental à identidade de gênero com base nos princípios da dignidade da pessoa, da igualdade, da vedação de discriminações odiosas, da liberdade e da privacidade está na Constituição Federal e deve ser respeitado.
“O julgamento é um divisor de águas a ser celebrado. Até a ocorrência dele, víamos uma peregrinação burocrática de pessoas que desejam ver reconhecidos sua identidade de gênero e registro civil de sexo e nome”, disse Carlos Eduardo Paz, defensor público-geral da União.
“Com a decisão, o Supremo sinaliza um avanço na cidadania. Os transgêneros poderão de agora em diante, dispensadas maiores condicionantes, exigir do Estado, sem qualquer tipo de preconceito ou violência institucional, o seu reconhecimento pleno da sua busca à felicidade”, afirmou Paz. DIVERGÊNCIA Dez dos 11 ministros da corte participaram do julgamento —apenas Dias Toffoli estava impedido de participar porque já atuou no tema quando esteve à frente da Advocacia-Geral da União.
Todos defenderam que a autorização seria um avanço para a igualdade dos direitos entre as pessoas. Os magistrados divergiram em pontos sobre como a mudança no registro deve ser feita.
Para Marco Aurélio Mello, relator da ação, Ricardo Lewandowski e Gilmar Mendes, a autorização judicial deveria ser necessária. Alexandre de Moraes e Marco Aurélio entenderam que deveria haver idade mínima para que a pessoa pudesse mudar o nome (18 e 21 anos, respectivamente).
A divergência foi aberta por Edson Fachin, para quem não é necessária a autorização. “Quando se lê a cláusula de igualdade entre homens e mulheres prevista na Constituição da República, não se pode descurar das mais variadas obrigações a que o Brasil se vinculou na esfera internacional no que se refere à proteção dos direitos humanos”, disse Fachin.
“Noutras palavras, a alteração dos assentos no registro público depende apenas da livre manifestação de vontade da pessoa que visa expressar sua identidade de gênero. A pessoa não deve provar o que é e o Estado não deve condicionar a expressão da identidade a qualquer tipo de modelo, ainda que meramente procedimental.” FELICIDADE Os ministros Luís Roberto Barroso, Rosa Weber, Luiz Fux, Celso de Mello e Cármen Lúcia, presidente do STF, também consideraram que a autorização judicial não é necessária. “É um julgamento que marca mais um passo na igualdade”, disse Cármen Lúcia. “Só quem sofre preconceito é quem pode falar”, acrescentou a ministra.
“Realmente, não há espaço para dúvida quanto à importância do reconhecimento para a autoestima, para a autoconfiança, para a autorrealização e para a felicidade”, disse Lewandowski.
Fux ressaltou a importância de adequar a identidade de gênero à busca pela felicidade. Para Barroso, seria abusivo impor requisitos ao processo de reconhecimento de identidade de gênero.
A Corte Interamericana de Direitos Humanos, órgão de interpretação dos tratados de direitos humanos regionais, criou recentemente parâmetros para o reconhecimento do direito à identidade de gênero.
Para a Corte, a mudança de prenome e sexo em documentos civis de identificação deve feita sem a imposição de constrangimentos ou submissão a exames médicos, como medida essencial de garantia de outros direitos, como a proteção contra tortura, violência e opressão.
Com intensa menção a essa decisão e aos critérios indicados, o Supremo Tribunal Federal reconheceu o direito a transgêneros (pessoas que não se identificam com o gênero atribuído no nascimento) de mudarem seu prenome e sexo (inscrição masculino/feminino) no registro civil (certidão de nascimento, CPF, RG) administrativamente, sem que seja necessária a realização de procedimento cirúrgico de redesignação de sexo e sem necessidade de autorização judicial.
A posição do STF põe fim a um grande embate que vem sendo travado nos tribunais nos últimos anos. As ações judiciais propostas em favor das travestis, das mulheres transexuais e dos homens trans, buscando judicialmente a mudança de prenome e do sexo nos documentos de identificação civil, recebiam respostas diferentes.
Na loteria judicial, algumas pessoas conseguiam; outras, não. No percurso, invariavelmente a maior parte era submetida a processos onde a transgeneridade foi considerada doença, impondo cirurgia para mudança do registro de prenome e sexo.
A partir do pronunciamento do plenário do Supremo, essas exigências e constrangimentos acabam. Agora, todos os cartórios de registro civil deverão aplicar o mesmo critério: por autodeclaração, qualquer pessoa maior de 18 anos pode requisitar a mudança de prenome e sexo nos seus registros, tal como foi determinado na interpretação conforme à Constituição que se deu ao artigo 58 da lei 6.015/73, a Lei de Registros Públicos. Está vedado aos cartórios impor qualquer outra condição.
Trata-se de um emblemático caso de direito ao reconhecimento; direito de ser tratado não por uma identidade imposta socialmente, e sim de acordo com sua própria identificação.
Há um longo caminho para uma plena cidadania, sobretudo no país que mais mata pessoas transexuais. Mas esta decisão constitui um passo essencial para a promoção da inclusão de milhares de pessoas, na medida em que remove os obstáculos jurídicos formais à igualdade que reforçavam atos discriminatórios.
Prestes a completar 30 anos, a Constituição, com seus mandamentos de pluralismo, tolerância e equidade, finalmente começa a atingir aqueles que dela precisavam, abrindo espaço para o fortalecendo da concepção de um Estado de Direito para todos. ELOÍSA MACHADO DE ALMEIDA JULIANA FABBRON