Folha de S.Paulo

Acho que o Geovani é aquele craque que, em vez de ser só ótimo em uma jogada conhecida, descobre uma jogada inesperada. (...) Não sabia quanto tempo ia levar, mas sabia que uma hora ia acontecer [de ele ser descoberto]

- MAURÍCIO MEIRELES

A leitura, para Geovani Martins, começou como encenação. Aos quatro anos, o menino levava revistas em quadrinhos para a rua e contava as histórias que havia decorado a partir das leituras de sua avó —e fingia para os amigos que as estava lendo.

Já a escrita —outra forma de encenação— veio mais tarde, adolescent­e, quando passava períodos que a ele pareciam estranhos: abria um Machado de Assis e se via espantado com sensações, às vezes se emocionava.

“Me interessei pela possibilid­ade de mexer com os outros por meio das palavras. E vi que era possível, porque estavam fazendo aquilo comigo”, diz ele, morador da favela do Vidigal.

Com 26 anos ele estreia como escritor em uma história para lá de improvável. Seu “O Sol na Cabeça”, um conjunto de 13 contos, chega às livrarias pela Companhia das Letras —com os direitos já vendidos para nove países nos últimos meses.

No exterior, o livro sairá por algumas das maiores editoras do mundo: Farrar, Straus & Giroux (EUA), Faber & Faber (Reino Unido), Suhrkamp (Alemanha) e Mondadori (Itália), entre outras. Nesta semana, a obra também foi vendida para a China.

“O Sol na Cabeça” foge dos estereótip­os sob os quais um autor com a origem de Martins costuma ser visto. Mas é claro que a maioria de seus personagen­s são da favela —e deles ele nunca diz a cor, para provocar o leitor a pensar por que nas situações narradas os imaginamos negros.

É claro que seu universo de vida está lá, como em um conto que descreve o ódio e a tristeza que um rapaz negro sente por ser olhado com medo por um homem no ponto de ônibus, sentimento que conhece bem. Ou no conto que mostra o ceticismo com as UPPs. Ceticismo que se estende à intervençã­o federal no Rio.

“É impossível achar que vai dar certo, porque temos 30

CARLITO AZEVEDO

poeta anos com a mesma política de drogas, que sempre deu errado. Agora é a mesma coisa, só que com um poder a mais, o poder militar”, diz. HOMEM-PLACA Rapazes com a vida de Martins não costumam virar escritores. Nascido em Bangu, zona oeste do Rio, filho de uma cozinheira e um jogador de futebol amador, ele trabalhou desde cedo. Distribuiu papéis de empréstimo fácil, foi homem-placa, entregador de comida, garçom em casas de festa e em barraca de praia. Largou a escola na oitava série.

Além do Vidigal, viveu na Rocinha e na Barreira do Vasco. Da sua sala, vê o ocre dos barracos e o azul do mar.

Foi alfabetiza­do pela avó e passou a pedir livros sempre que podia. Durante toda a vida, leu sempre e muito —primeiro best-sellers, depois autores canônicos como Machado e Drummond. Mas só agora consegue comprar livros novos —antes recorria a sebos.

O sol estava mesmo na cabeça em parte importante dessa trajetória. Quando seu emprego era carregar, em uma bicicleta, a placa de um candidato de esquerda de uma ponta a outra de Copacabana, Martins imaginava histórias.

Em dado momento, o partido achou que estava muito duro pedalar naquele calorão —e o colocou para vigiar uma placa ao lado de uma estação de metrô. Então, ele passou a ter oito horas por dia para ler (com um olho no livro e outro na placa, é claro).

Com Graciliano Ramos, lembra, aprendeu que era preciso escrever como as lavadeiras de Alagoas: primeiro molhar, depois torcer, molhar de novo, torcer outra vez, colocar anil e sabão, torcer de novo, enxaguar, bater na pedra limpa, até não pingar uma gota. Só depois o varal.

“Aprendi que a palavra não foi feita para enfeitar, mas para dizer”, afirma ele. OFICINA LITERÁRIA A virada veio em uma oficina literária com o poeta Carlito Azevedo, na Biblioteca Parque da Rocinha, em torno da antiga revista literária “Setor X”, em 2014. O autor pediu para os alunos escreverem um conto a partir da notícia da morte do cinegrafis­ta da Band Santiago Andrade, atingido por um rojão de um manifestan­te.

Alguns alunos escolheram a polícia, outros os manifestan­tes ou o cinegrafis­ta — Martins imaginou o rojão, que se sentia feliz por, ingênuo, acreditar ser levado para alegrar uma festa.

“Ele escolheu um ângulo inesperado. Geovani é aquele craque que, em vez de ser só ótimo em uma jogada conhecida, descobre uma inesperada. O rojão era o único elemento da cena que não vinha com psicologia pronta”, afirma o poeta e instrutor.

Azevedo se lembra de chegar a uma aula e encontrar Martins com “Hamlet” no colo, reescreven­do a peça de Shakespear­e em um caderno.

“Já era sintomátic­o que o Geovani pegasse algo psicologic­amente tão denso e problemáti­co. Tinha uma forma de olhar para o mundo e escutar tudo que era dito. Não sabia

GEOVANI MARTINS

escritor

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