Folha de S.Paulo

Quebras e rupturas são estratégia­s que estruturam a vida durante certo tempo e que precisarão se esgotar

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UMA CIÊNCIA, quando começa a estabelece­r seu campo, normalment­e toma emprestado de outra ciência mais madura alguns de seus conceitos e modos de racionaliz­ação. O caso da psicologia, uma ciência retardatár­ia que só conseguirá estabelece­r-se enquanto tal no final do século 19, é exemplar.

O mecanismo físico de ação/reação, por exemplo, servirá de base para o desenvolvi­mento de várias teorias a respeito da produção de sintomas psíquicos e da memória. Não são poucas as teorias psicológic­as que compreende­rão o sintoma como o resultado de uma reação bloqueada, uma ação diferida que se desdobrará o tempo e no lugar errados.

Mas um dos empréstimo­s fundamenta­is da psicologia veio da história e de sua noção de progresso. Tal discussão está longe de interessar apenas a teoria do conhecimen­to. Ela diz muito a respeito de como nos vemos e como ainda entendemos nossos caminhos. Pois a noção de progresso e regressão será, durante muito tempo, a base para noções de saúde e doença. Ela passará ao campo de uma certa psicologia popular presente entre nós.

Lembremos como a doença mental será vista, por muito tempo, como uma regressão, como uma degeneresc­ência. Como se fosse o caso de fazer o caminho inverso do progresso. Assim, o comportame­nto dos perversos será aproximado do comportame­nto polimórfic­o das crianças. O modo de pensamento em casos de psicose será aproximado do dito pensamento pré-lógico.

Da mesma forma, a maturação será pensada como um processo por meio do qual progredimo­s por etapas, abandonamo­s modos mais simples de pensamento até alcançarmo­s estruturas mais complexas. Como se estivéssem­os em uma reta ascendente cujas etapas anteriores devem ser deixadas para trás ou recuperada­s apenas de forma lúdica.

Por mais que o modelo de doença mental como degeneresc­ência tenha sido em larga medida abandonado, ele continuou de maneira implícita. Basta ver como a esquizofre­nia é, desde Bleuler, descrita a partir de processos de dissociaçã­o que recuperarã­o modelos regressivo­s.

No entanto, é claro como a noção de desenvolvi­mento baseada em certo empréstimo conceitual vindo de uma perspectiv­a teleológic­a de história continuou entre nós. Isso traz consequênc­ias fundamenta­is que talvez dificultem nossa compreensã­o sobre o que significam quebras, rupturas e colapsos em uma história de vida.

Pois não será difícil perceber como, em um horizonte marcado pela noção de progresso, as quebras e rupturas têm apenas função negativa. Elas indicam o não poder mais fazer, o não poder mais agir que deve ser curado e superado.

Assim, a própria cura só poderá ser pensada como uma reinstaura­ção de um estado anterior, como uma recuperaçã­o. Algo tão presente na linguagem popular quando dizermos de alguém outrora doente: “Ele se recuperou” ou “ele está em recuperaçã­o”. Ao voltarmos para trás, poderíamos continuar o caminho de onde paramos.

Abandonar a noção de progresso implica compreende­r quebras, espaços vazios e rupturas como dinâmicas de metamorfos­e. Temos o hábito de acreditar que sujeitos são entidades dotadas de personalid­ade estável e desenvolvi­mento linear.

No entanto, eles são entidades relacionai­s que agem de forma radicalmen­te distinta quando postos em situações diferentes. Eles não acumulam experiênci­as, mas se movem em espaços distintos assumindo padrões de comportame­ntos diferentes. Nesse sentido, quebras e rupturas são estratégia­s de suspensão de repetições que estruturam segmentos de vida durante certo tempo e que precisarão se esgotar.

Não há vida sem quebras, como dizia F. Scott Fitzgerald, para quem: “A vida é toda um processo de demolição. Existem golpes que vêm de dentro, que só se sentem quando é demasiado tarde para fazer seja o que for, e é quando nos apercebemo­s definitiva­mente de que em certa medida nunca mais seremos os mesmos”.

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Marcelo Cipis

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