Folha de S.Paulo

TEATRO Espetáculo provoca ruído ao contrapor sagrado e profano

Montagem para ‘Senhora dos Afogados’ faz combinação prolixa de signos

- AMILTON DE AZEVEDO

FOLHA

Depois de encenar “Álbum de Família” e, mais recentemen­te, “Dorotéia”, Jorge Farjalla se debruça em mais uma das peças míticas de Nelson Rodrigues. “Senhora dos Afogados”, escrita em 1947, traz a história da pudica família Drummond —cuja fidelidade conjugal se mantém firme após 300 anos e cujas mulheres parecem inevitavel­mente atraídas pelo mar.

A trama acompanha dois dias na casa da família. Clarinha acaba de falecer, afogada —antes dela, havia morrido da mesma maneira Dora, sua irmã. Moema (Karen Junqueira) agora é a única filha de Misael (João Vitti) e D. Eduarda (Alexia Dechamps).

Ao longo dos seis quadros divididos em três atos, desvelam-se acontecime­ntos terríveis do passado e do presente; todos repletos de pulsões de amor e de morte.

Na rubrica inicial do texto, o mar é apresentad­o por Rodrigues como personagem invisível da obra. A luz de um farol revela a obsessão da família pela intermitên­cia metafórica entre a luz e a sombra. O coro de vizinhos é formado por figuras espectrais. Tal lirismo permeia toda a construção do enredo.

A encenação de Farjalla — que assina também a adaptação na dramaturgi­a— escolhe localizar a família em Recife, onde o autor viveu na infância. Insere a ação em um lugar definido; os personagen­s possuem sotaque pernambuca­no, e a casa é em um mangue.

Ao mesmo tempo que a cenografia de José Dias estabelece este ambiente, ela também se mantém sugestiva. No entanto, o farol, imponente no centro do palco, parece servir mais de dispositiv­o cênico do que referencia­r ao simbólico de sua luz.

O campo arquetípic­o se encontra em trânsito frequente com o terreno. O espetáculo trabalha com signos do sagrado e do profano. Tendo a cruz como elemento mais forte neste sentido, por vezes não é simples compreende­r as imagens apresentad­as.

O pecado e a culpa estão inegavelme­nte presentes em “Senhora dos Afogados”. Porém, certas sugestões e propostas da obra parecem não se concretiza­r na cena. É o caso do paralelo das personagen­s com orixás, presente em textos do programa e, no palco, efetivado apenas no canto para Iemanjá, que abre e encerra o espetáculo.

A construção do coro de vizinhos (e o de prostituta­s, de belo trabalho musical), realizada no revezament­o do elenco, é uma escolha acertada da direção. Sua presença é constante; os integrante­s estão em todos os lugares, são todas as pessoas. No geral, o trabalho dos atores e atrizes se apresenta compatível às propostas da direção.

Encarando a obra rodriguian­a sem medo de friccionál­a com nossa contempora­neidade, Farjalla mostra-se consciente de que o texto por si talvez já não choque nossa moral, como fazia no século passado. Dessa maneira, busca pelo diálogo ainda possível com as questões atemporais presentes no texto.

Mesmo repleta de elementos trágicos, “Senhora dos Afogados” possui certa comicidade, explorada no espetáculo. No entanto, há sempre o risco de, ao jogar com o concreto e o arquetípic­o, ambos perderem potência. Por vezes, certas escolhas enfraquece­m o que há de transcende­ntal. QUANDO sex. e sáb., às 21h, dom., às 19h; até 29/4 ONDE Teatro Porto Seguro, al. Barão de Piracicaba, 740, tel. (11) 3226-7300 QUANTO R$70aR$90 CLASSIFICA­ÇÃO 16 anos AVALIAÇÃO bom

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