Folha de S.Paulo

Visita para doutor Paulo

Folha encontra ex-prefeito Maluf, preso em dezembro, no Complexo da Papuda, em Brasília; debilitado, ele chora e repete que é inocente

- MÔNICA BERGAMO

ENVIADA ESPECIAL A BRASÍLIA

Eu visitei Paulo Maluf na prisão.

Ele estava tão ansioso para o encontro, na sexta-feira, 2, que já me esperava na porta do bloco em que fica sua cela no Complexo Penitenciá­rio da Papuda, em Brasília.

“Minha querida”, disparou no velho estilo, abrindo os braços para um abraço. “Vim fazer a recepção a você.”

Maluf, 86, parece ainda mais velho. Está de cabelos mais brancos do que o usual (ele não pode mais pintar), barba por fazer e com a pele do rosto cheia de manchas.

É o dia da visita semanal de familiares e amigos aos detentos da Papuda.

Todos os que entram têm que se vestir de branco da cabeça aos pés e usar sandálias no estilo Havaianas, o mesmo uniforme dos presos.

A primeira impressão que se tem é a de estar numa cerimônia religiosa de umbanda ou candomblé.

Maluf também está vestido de branco. Como tem muita dificuldad­e de caminhar, foi autorizado a usar sapatos.

Curvado e apoiando o braçoesque­rdonumamul­eta,ele andavagaro­samentepel­ocorredor que nos levará à cela 10, um espaço de cerca de 10 m² que divide com três detentos.

Apoia o lado direito do corpo na parede para não cair. O dedo mínimo de sua mão está sangrando, deixando marcas por onde encosta.

O ex-ministro Geddel Vieira Lima, num pátio ao lado separado do corredor por uma grade, vê Maluf.

Acena uma vez. Acena de novo, algo surpreso ao reconhecer a colunista da Folha.

Maluf empurra a porta da cela. “Ladies first [mulheres primeiro]”, diz.

O local tem dois treliches, num total de seis camas. Mas só quatro são ocupadas — além dele, o espaço hospeda um médico, um holandês e um ex-funcionári­o público.

Todos penduram lençóis e cobertores para tapar a vista dos colchões, preservand­o a pouca privacidad­e que têm.

O ex-prefeito diz que não sabe bem por que crimes os colegas foram condenados.

Nem quer saber. “A regra aqui é ‘Don’t ask, don’t tell’ [não pergunte nada, não conte nada]”, ensina.

Há ainda uma mesa e quatro cadeiras de plástico e uma TV Semp de 16 polegadas. As paredes parecem um pouco sujas, mas o chão está limpo.

Maluf oferece uma cadeira. Senta-se em outra. E desanda a falar.

“Veja, eu estou aqui... eu não posso e não quero dar entrevista. Mas por que estou aqui?”, questiona.

“Querem que eu cumpra pena? Tudo bem. Mas eu posso cumprir em São Paulo, perto da minha família. Eu posso cumprir na minha casa. Eu sou o único preso aqui que tem 86 anos. E cumprindo regime fechado! O único!”

Invoca seus problemas de saúde. “Eu tive câncer de próstata. Eu sou cardíaco. Tomo 15 remédios por dia.”

Aponta para os medicament­os, que ficam em saquinhos plásticos e são guardados na cama de cima do treliche junto a frutas, biscoitos e Toddynhos que são levados aos presos pelos familiares.

Precisa fazer fisioterap­ia, mas a especialis­ta da área está de férias e ele não consegue começar o tratamento.

“A doutora Etelvina [médica da Papuda] é maravilhos­a”, segue ele. “O Mike também”, diz, referindo-se ao médico que está na mesma cela. “Ele foi colocado aqui para cuidar de mim por causa dos meus problemas de saúde”, afirma. “

“Todos têm boa vontade. Mas é aquela coisa: o Ayrton Senna vai correr em Interlagos. Se ele não tem uma Ferrari,dequeadian­tatentarco­r rer a pé? Eles são bons, mas aqui não há condições [de um bom tratamento de saúde].”

Conta que “outro dia chamaram o Mike para atender a um jovem de 22 anos que teve parada cardíaca. Ele fez de tudo, mas precisava de desfibrila­dor. O moço morreu.”

Jesse Ribeiro, amigo e assessor há 42 anos que o visita todas as sextas-feiras, pega papel higiênico para Maluf limpar o dedinho, que continua sangrando.

O banheiro da cela foi reformado por causa do ex-prefeito: barras foram colocadas para ele se segurar durante o banho, com chuveiro Lorenzetti. Um degrau foi nivelado. Há uma pia e uma privada.

Maluf diz que não pode reclamar do tratamento tanto dos presos quanto dos agentes, “muito educados”.

“Me tratam de forma reverencia­l, pela idade e pela minha história.” Diz que outro dia um detento fez até discurso: “No tempo do Maluf as pessoas em SP andavam tranquilas porque tinha a Rota”.

Quando chegou à Papuda, o ex-prefeito deu um pouco de trabalho. Com o já conhecido jeito mandão, distribuía até broncas entre os agentes.

Numa manhã, ele recebia a visita de Jesse quando o carcereiro chegou para levá-lo à dentista. Batendo no pulso, Maluf dizia: “Ela combinou às 9h. E já são 11h. Aqui não tem horário? Não vou.”

O assessor interferiu. “Doutor Paulo, aqui o senhor não é autoridade. É preso.”

Mike, jovem, alto e forte, chega com três copos de plástico com café e leite que nos oferece. Outro preso entrega uma quentinha para o ex-prefeito. “Abre aí para ela ver o meu rango”, pede ele.

O almoço do dia é arroz, feijão, frango desfiado e cenoura cozida. “Não é que a comida seja ruim. É que não é o gosto de casa, que eu estou acostumado.”

Ele rejeita as quentinhas e só come a comida da cantina: pizza, esfirra, cachorro-quente e pamonha. “E tomo CocaCola e Fanta o dia inteiro.”

O ex-prefeito tem direito de gastar R$ 100 por semana, que Jesse leva a ele todas as sextas-feiras, junto com frutas e às vezes biscoitos.

Já estourou o orçamento e teve que pedir dinheiro emprestado duas vezes ao ex-senador Luiz Estevão, de Brasília, que também cumpre pena na Papuda.

“Todos os domingos eu e a Sylvia [mulher dele] almoçávamo­s comida árabe em casa, com os quatro filhos, os seis netos e os 13 bisnetos”, diz. E começa a chorar.

“Eu sinto falta da Sylvia, sabe? Ela sorriu comigo, ela chorou comigo a vida inteira. Ela vai fazer 83 anos no dia 12 de abril. E no dia 23 nós fazemos 63 anos de casados”.

Soluçando, repete a frase que já virou bordão: “Eu sou casado há seis décadas. Com a mesma mulher”.

Maluf não admite que a família o visite. “Você acha que uma mulher da idade dela tem que passar pelo que você passou hoje [revista íntima]? Não quero! Não quero!”

Os filhos também estão proibidos por ele de ir à Papuda. Jesse é o único autorizado a visitá-lo.

“Eu não estou triste. Eu estou é magoado, sabe? Eu sou até um homem de sorte. Eu tenho uma mulher exemplar. E nasci no Brasil. Aqui é uma democracia”, diz.

“Se eu tivesse nascido no Líbano [como seus antepassad­os], eu poderia estar sendo torturado, executado, sem chance de defesa. Aqui meus advogadosv­ãoconsegui­rprovar que sou inocente.”

Ele é defendido pela equipe dos escritório­s de Ricardo Tosto e de Antonio Carlos de Almeida Castro.

Eles pedem no STJ (Superior Tribunal de Justiça) que Maluf cumpra prisão domiciliar até o julgamento de habeas corpus que apresentar­am ao STF (Supremo Tribunal Federal).

O ex-prefeito cita um professor de direito que dizia aos alunos: “Vocês precisam ter sobriedade para condenar e coragem para absolver”.

“Mas parece que agora muitos têm medo de absolver”, segue.

“Eu só fiz o bem a minha vida inteira”, afirma. E começa a citar as obras que fez na cidade de São Paulo quando foi governador do Estado e depois prefeito.

“Queriam derrubar o Minhocão porque ele se chamava Costa e Silva [general que presidiu o país de 1967 a 1969, na ditadura militar]. Agora que mudou de nome [para João Goulart], ninguém critica mais, né?”

Se detém na avenida Águas Espraiadas —ele foi condenado à prisão justamente sob a acusação de ter desviado recursos da obra.

“A minha avenida...”, diz, e volta a chorar. “Eu fiz 80% dela. Faltam só 20% para ligá-la à [rodovia] Imigrantes. Seis prefeitos vieram depois de mim. E ninguém termina a minha avenida.”

“Aquele lugar [onde hoje passa a via] era um lixão, com 40 mil favelados. Foram todos morar nos prédios do Cingapura. Não machuquei ninguém. Não matei ninguém. Por que eu estou aqui?”, diz, soluçando. “Eu estou sofrendo uma tortura moral.”

Diz que não teve medo quando soube que seria preso, em dezembro. Levado à carceragem da Polícia Federal em SP, ele passou dois dias com os irmãos Wesley e Joesley Batista, da J&F.

“Eles foram uns amores comigo.”Engasgapar­anãochorar outra vez. “Uns amores. Limparam a minha cela, me deram chocolates. Eles foram de um carinho comigo que nem meus filhos Flávio e Otávio poderiam ser.”

Mike volta à cela. Pergun-

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