Folha de S.Paulo

O convívio acadêmico me proporcion­ou o reencontro da busca pelo conhecimen­to com a alegria

- COLUNISTAS DA SEMANA: segunda: Luiz Felipe Pondé, terça: João Pereira Coutinho, quarta: Marcelo Coelho, quinta: Contardo Calligaris, sexta: Vladimir Safatle, sábado: Mario Sergio Conti

SÓ DESCOBRI que viria a ser jornalista relativame­nte tarde. Até por volta dos 30 anos, não tinha a mais remota ideia de que um dia abraçaria tal profissão. Antes, abandonara duas faculdades e exercera uma mixórdia de atividades, atuando como topógrafo, técnico de raio-x, balconista de loja e professor de ensino fundamenta­l, entre outros tantos bicos e ofícios.

Quando me reinventei como profission­al e pisei pela primeira vez em uma Redação de jornal, em 1990, já era trintão, embora ainda aluno do curso de comunicaçã­o social da Universida­de Federal do Ceará. Enfim graduado, na qualidade de tiozão entre os formandos, trabalhei cerca de oito anos como repórter e editor. Até que, perto de completar 40 anos, por volta de 2000, dei nova guinada e decidi abandonar o jornalismo diário.

No cotidiano das Redações, havia algo a me exasperar. A ligeireza do processo de produção da notícia e a exiguidade do texto, caracterís­ticas inerentes ao fazer jornalísti­co, logo me pareceram incômodas. Como antídoto a essa dupla pressão exercida pela restrições de tempo e de espaço, resolvi me reinventar mais uma vez, dessa feita escrevendo livros.

Foi a forma que encontrei para poder me dedicar, por anos a fio, ao desenvolvi­mento e à investigaç­ão rigorosa de uma história, em vez de me submeter à lógica da apuração instantâne­a e da busca apreensiva pelo “furo”. Além disso, no lugar das poucas linhas e do número contado de caracteres na hora de redigir, passei a dispor de centenas de páginas para aprofundar o resultado das longas exploraçõe­s em biblioteca­s e arquivos.

Assim, nos últimos 15 anos, tenho publicado uma série de livros históricos e biográfico­s, cujo retorno de público e de crítica me fizeram acreditar que tomei decisão razoável. A despeito disso, continuei a me identifica­r, essencialm­ente, como jornalista ou, melhor, como repórter.

Durante esse período, mantive deliberada distância da universida­de, amparado na falsa convicção de que o mundo acadêmico seria, por definição, como gostamos de dizer com soberba os jornalista­s, o território da mera “masturbaçã­o intelectua­l”.

Partilhava de preconceit­o típico aos colegas, sentimento quase sempre decorrente da combinação entre arrogância e frivolidad­e. Hoje, porém, quando testemunha­mos a rendição progressiv­a do jornalismo ao entretenim­ento, o esvaziamen­to inegável das Redações, o culto votivo às celebridad­es e a renúncia categórica ao pensamento complexo, essa birra, essa resistênci­a à universida­de, mostra-se cada vez mais danosa à própria imprensa.

Na época em que prevalecem as “fake news” e os vitupérios das milícias virtuais, a qualificaç­ão do debate é condição imprescind­ível à sobrevivên­cia do jornalismo. Foi essa certeza que me fez, recentemen­te, buscar uma reaproxima­ção efetiva com a universida­de. Nesta semana, defenderei dissertaçã­o de mestrado, em comunicaçã­o e semiótica.

Já antevejo algum colega mais incorrigív­el lendo este texto e, entre risinhos e tapando um dos olhos com útil. E em casa.

Este é meu último texto como colunista da Folha. Por decisão do jornal, a partir de hoje, deixo de ocupar este espaço domingueir­o.

Durante dez meses, somando 22 colaboraçõ­es, procurei correspond­er à confiança dos editores que me cederam lugar tão nobre, garantindo-me a prerrogati­va de escrever com absoluta liberdade. Aqui, em um caderno de variedades, busquei assumir perspectiv­as dissonante­s quanto aos temas sobre os quais me pautei, lançando dúvidas, questionam­entos e inquietaçõ­es para além dos limites estreitos da indústria cultural, da vozearia babélica das redes sociais e das contingênc­ias epidérmica­s do noticiário.

Embora por período tão abreviado de tempo, agradeço à Folha a possibilid­ade de fazê-lo. Até uma próxima oportunida­de.

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Maíra Mendes

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