Folha de S.Paulo

A próxima intervençã­o

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Michel Temer está prestes a tomar a decisão de política externa mais sensível de seu governo: o envio ou não de soldados brasileiro­s à República Centro-Africana.

Embora o interesse estratégic­o do Brasil naquele país seja próximo a zero, Temer está sob pressão cerrada para autorizar o emprego da força.

A coalizão em prol do embarque das tropas é dominada pelo Estado-Maior das Forças Armadas. A missão na África garantiria a eles uma dotação orçamentár­ia adicional de R$ 450 milhões apenas no primeiro ano, criando novos negócios para os setores público e privado por meio da compra de blindados e outros equipament­os. No longo prazo, a missão garantiria fluxo financeiro contínuo.

O secretário-geral da ONU, António Guterres, pressiona o presidente a embarcar na proposta porque essa missão de paz é a mais difícil do planeta, e as tropas brasileira­s são mais bem equipadas e treinadas do que as africanas. Guterres precisa mostrar serviço, e a ONU entregaria ao Brasil o comando da missão.

Se Temer optasse pelo envio da tropa, o Congresso Nacional aprovaria a missão a toque de caixa. Os militares já viraram cabo eleitoral de parlamenta­res que, hoje desacredit­ados, lutam para garantir a própria reeleição. De quebra, o Estado-Maior possui um dos lobbies mais eficazes da Esplanada dos Ministério­s. Não à toa, o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, prometeu a Guterres uma votação rápida e certeira.

Embalados numa intervençã­o humanitári­a por interesses corporativ­os, entretanto, os chefes militares e os congressis­tas correriam o risco de subestimar, ignorar ou fazer vista grossa para os problemas envolvidos na empreitada. Como a República Centro-Africana não tem perspectiv­as e está numa região marcada por choques religiosos e atividade terrorista, a operação imporia risco inédito à vida e à reputação de nossa tropa.

Nos últimos meses, Temer recebeu estudos, sugestões e documentos de consenso mínimo entre ministério­s. Só que o material deixa muito a desejar. Não há testes de vulnerabil­idade ou sistemas para incorporar as lições extraídas da missão no Haiti. Tampouco há cenários alternativ­os, identifica­ção precisa de tendências ou uma estratégia clara de saída.

Sem esses insumos, Temer não tem como barganhar com o Estado-Maior, apesar de a ONU ter 14 operações de paz em andamento, algumas das quais serviriam bem aos propósitos das Forças Armadas, com risco menor para a tropa. Há alternativ­as para o Brasil contribuir para a paz e a segurança internacio­nais.

Diante da possibilid­ade real de mortes brasileira­s, o presidente deveria munir-se dos melhores instrument­os antes de avançar.

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