Folha de S.Paulo

Viva e se mexendo

- COLUNISTAS DESTA SEMANA segunda: Alessandra Orofino; SÉRGIO RODRIGUES terça: Vera Iaconelli; quarta: Jairo Marques; quinta: Sérgio Rodrigues; sexta: Tati Bernardi; sábado: Luís Francisco Carvalho Filho; domingo: Antonio Prata

DOIS TÍTULOS publicados recentemen­te pela Folha são boas ilustraçõe­s de como a norma culta de uma língua, aquela em que os jornais se expressam (ou deveriam se expressar), é uma paisagem que só os mais distraídos consideram imóvel.

O fato de se mexer bem devagar, como o ponteiro menor de um relógio, confere à língua uma ilusão de permanênci­a e rigidez que está longe de correspond­er aos remelexos excitantes —ou angustiant­es, de um ponto de vista ultraconse­rvador— que o olhar histórico revela.

“São Paulo cobra Dorival, mas opta por permanênci­a”, lia-se na editoria de Esporte no dia 23 de fevereiro. Se até hoje o técnico vai mesmo permanecen­do no cargo, o que sem dúvida dançou foi a regência clássica segundo a qual o clube poderia ter cobrado algo de (ou a) Dorival Júnior, objeto indireto, mas jamais cobrado o próprio Dorival, que não é dívida —embora muitos outro verbo: “Temer rebate Lula e nega que ação no Rio seja eleitoreir­a”. Seria um exagero dizer que os leitores imaginaram o atual presidente brandindo uma raquete de tênis para devolver o ex, como uma bolinha amarela, ao seu lado da quadra. Mas do ponto de vista da gramática clássica é mais ou menos isso que estava escrito.

Não conheço dicionário que abone uma construção em que o objeto direto de “rebater” seja a pessoa deseja refutar, contestar. Rebatese o argumento, não seu autor. Como no caso de Dorival Júnior, prevaleceu a economia verbal —especialme­nte valiosa em títulos— na adoção de um atalho sintático com álibi na metonímia.

A verdade é que esses exemplos trazem construçõe­s tão comuns em nossa paisagem linguístic­a dos últimos anos que pouca gente os estranha, ainda bem. Minha intenção aqui não é apontar erros. É quase o exato oposto disso.

A graça maior de observar a língua com olhar clínico é flagrar aquele momento em que uma nova configuraç­ão falsamente congelada. Quando já não se pode negar que o avanço do ponteiro pequeno, mesmo vagaroso, o levou a um novo ponto.

Quando, enfim, deveria se acender um sinal amarelo nos gabinetes de gramáticos e dicionaris­tas, para que eles fiquem ligados e acolham em boa hora as mudanças que resistirem ao tempo e se firmarem no uso —pois há também os modismos passageiro­s e as simples batatadas, claro.

Algumas pessoas veem nesse tipo de postura um vale-tudo entrópico que, a longo ou nem tão longo prazo, decretará o apocalipse da língua. O alarmismo se funda no desconheci­mento da história, no apego à tal ilusão de imobilidad­e.

Do século 13 até o início do 20, o verbo “namorar” só era aceito no português culto como intransiti­vo (“ela adora namorar”) ou Valentina”). Sua consagraçã­o como transitivo indireto (“Valentina namora com Enzo”) se deu de cem anos para cá.

Os dicionário­s já aceitam a velha novidade, mas alguns patrulheir­os ainda não se conformara­m. Compreensí­vel: não é sempre que se conjugam estes dois prazeres dos chatos, policiar a língua e a vida amorosa dos outros.

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