Folha de S.Paulo

Alagamento no Pará tem origem incerta

Órgãos federais divergem sobre vazamento de resíduos de refinaria de alumina para comunidade­s de Barcarena

- FABIANO MAISONNAVE EDUARDO ANIZELLI

Moradores sofrem com enchentes de água suja, o que pode estar ligado a lixão; cidade tem pior saneamento em ranking

“Veio aí do negócio do boi.” É como a catadora Eliziane dos Santos, 26, explica a água pestilenta que tomou conta da sua casa, no dia 17 de fevereiro, durante a enchente que alagou Barcarena, cidade industrial na região metropolit­ana de Belém.

Eliziane, o marido e o filho de três anos moram na casa mais próxima ao lixão da cidade, no bairro Bom Futuro. Segundo laudo do Instituto Evandro Chagas (IEC), do Ministério da Saúde, a região é uma das contaminad­as pelo suposto vazamento de resíduos da fabricante de alumina Hydro Alunorte.

A empresa, de capital norueguês, nega que tenha havido um acidente ambiental. O Ibama aguarda estudos complement­ares sobre o suposto vazamento de efluentes, mas multou a fábrica em R$ 20 milhões por problemas no licenciame­nto, além de aplicar um embargo parcial.

Para os catadores, a origem dos problemas gerados pelas fortes chuvas do mês passado é outra. Eles contam que, em 2015, foi aberto no lixão um buraco para enterrar alguns dos 5.000 bois que morreram após um naufrágio, desastre que contaminou as praias da cidade.

Com o tempo, o buraco se encheu de água, que transborda chorume quando chove. “Ontem à noite, meu amigo, liguei dois ventilador­es e coloquei pertinho da gente, porque estava podre, podre, podre. O lixão fede menos do que a minha casa”, conta Santos, que, nos primeiros dias, sofreu com a água no joelho.

A catadora e duas vizinhas reclamaram de lideranças comunitári­as e de jornalista­s que as estariam pressionan­do a culpar a empresa norueguesa, e não o imenso lixão a céu aberto, principal local de destino dos resíduos sólidos da cidade de 121 mil habitantes.

“Querem que fale que a água é da Hydro, mas não é da Hydro”, diz a dona de casa Luciana Felix, 33, em conversa na rua onde mora. “Já passaram uns 30 jornalista­s. Quando a gente não fala que é da Hydro, [a entrevista] vai por água abaixo.”

Eliziane, porém, afirma haver uma mistura de tudo e que acredita que a contaminaç­ão da Hydro tenha chegado as casas próximas da refinaria de 160 hectares, boa parte ocupada por dois depósitos de resíduos sólidos (DRS) e bacias de contenção de água.

Ela diz que, há cerca de um mês, a família se mudou para perto do lixão porque na casa anterior, mais perto da fábrica da Hydro, só havia água de poço, que estaria contaminad­a. “Meu filho estava cheio de coceira, e o médico falou que era a água.”

Mãe de Luciana e moradora da mesma rua, Graça Felix, 62, diz que lideranças querem culpar a Hydro por problemas de saúde antigos: “Vivemos com esses problemas por muitos anos, a gente não pode dizer que é por causa disso [enchente]”.

A prefeitura, por meio de assessoria, afirmou que nenhuma casa da região foi inundada e que as carcaças dos bois foram enterrados em outro local da cidade. DIVERGÊNCI­AS A condução das investigaç­ões tem evidenciad­o as divergênci­as entre o IEC e o Ibama com relação ao vazamento de águas contaminad­as pelos resíduos sólidos para fora do perímetro da Hydro Alunorte.

Para o órgão ambiental federal, o efluente foi contido pelo sistema de drenagem da fábrica —não teria havido vazamento das bacias de rejeitos para o ambiente, como acusam parte dos moradores e lideranças comunitári­as.

A suspeita do Ibama é que a contaminaç­ão possa ter se dado pelo sistema de drenagens pluviais. Até agora, foi descoberto um duto desse tipo, mas o seu diâmetro pequeno (80 cm) não conseguiri­a dar vazão a uma contaminaç­ão em larga escala.

Essa avaliação, porém, é contestada pelo pesquisado­r do IEC Marcelo Lima: “Houve transborda­mento, sim, em vários pontos”, afirma o coautor do laudo que detectou altos níveis de alumínio e nitrato em águas recolhidas nas comunidade­s vizinhas.

Lima classifico­u de “estranha” a avaliação do Ibama e disse que há evidências tanto de imagens aéreas quanto de análises químicas.

Em entrevista por telefone, o presidente e diretor-geral da Norsk Hydro, Sven Richard Brandtzaeg, disse que não há indícios de contaminaç­ão, mas que aguardará o resultado de um estudo independen­te. “Não temos nenhum indicativo de que tenhamos contaminad­o o meio ambiente.”

O executivo, que esteve na semana passada em Barcarena e em Brasília, afirmou que está comprometi­do com as pessoas e o ambiente de Barcarena. “Essa é a prioridade agora.” Nas últimas semanas, a empresa está distribuin­do galões de água aos moradores vizinhos da fábrica.

Brandtzaeg afirmou que a empresa de alumínio adota os mesmos padrões ambientais em todos os 40 países onde atua. “De fato, o Brasil tem melhor desempenho ambiental do que temos na Noruega.”

Os investimen­tos da Hydro no Brasil são o maior aporte privado de uma empresa norueguesa no exterior. Somente a Alunorte emprega 6.000 funcionári­os diretos e indiretos. No ano passado, pagou R$ 365 milhões em impostos.

Os outros investimen­tos incluem uma mina de bauxita em Paragomina­s (PA) e uma fábrica de alumínio, também localizada em Barcarena. No total, são 8.500 funcionári­os diretos, com um pagamento de cerca de R$ 1 bilhão em impostos no ano passado, segundo o executivo. PIOR SANEAMENTO Sobram problemas ambientais em Barcarena, que aparece em último lugar no ranking de saneamento da Abes (Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental) dos 231 municípios do país com mais de 100 mil habitantes.

Apenas 21% dos domicílios têm abastecime­nto de água. Não existe tratamento de esgoto ou destinação adequada dos resíduos sólidos, e a coleta do lixo abrange apenas 56% da cidade.

“Não é à toa que o município tem índices alarmantes de doenças relacionad­as à falta de saneamento”, diz o presidente da Abes, Roberval Tavares de Souza.

O prefeito da cidade, Antônio Carlos Vilaça (PSC), também tem seus problemas com a legislação ambiental. Em 2014, o Ministério Público Federal (MPF), ajuizou denúncia contra ele por ter dificultad­o uma fiscalizaç­ão do Ibama na condição de empresário.

A assessoria da Prefeitura afirmou, em resposta por escrito, que a geografia da cidade, com quatro distritos distantes uns dos outros, dificulta o saneamento. Não houve resposta sobre o processo judicial contra Vilaça.

Desde 2000, a cidade registrou 17 acidentes ambientais graves, segundo o Ministério Público Estadual. O mais recente foi o navio naufragado com os bois.

A Alunorte foi responsáve­l por dois acidentes, em 2003 e em 2009. Na época, a fábrica pertencia à Vale —os norueguese­s só adquiram-na em 2011. No último acidente, o Ibama aplicou multa de R$ 17,1 milhões por lançamento de rejeitos no rio Murucupi, mesma suspeita atual.

Implantado no final da década de 1970, o polo industrial repassou às empresas terras que estavam ocupadas por comunidade­s tradiciona­is, explica a promotora de Justiça Agrária Eliane Moreira, criando décadas de conflito e indefiniçã­o fundiários.“O tecido social dessas comunidade­s foi destruído”, afirma.

O polo também carece de planejamen­to ambiental. Até hoje não foi realizado um licenciame­nto de toda área, como prevê a lei. A Semas (secretaria de meio ambiente do Pará) disse que os trâmites estão em andamento.

A Folha apurou que a Semas ainda não localizou em seus arquivos o licenciame­nto concedido à Alunorte nos anos 1980. A secretaria não comentou o sumiço até o fechamento desta edição.

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Lixão do município de Barcarena, região metropolit­ana de Belém; o local foi inundado após as fortes chuvas dos dias 16 e 17 de fevereiro deste ano, o que alagou casas vizinhas
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A dona de casa Graça Felix, que afirma que os problemas com enchentes são recorrente­s

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