15H17: TREM PARA PARIS
Stone, Skarlatos e Sadler sugeririam, brincando, que deveriam ser interpretados por Chris Hemsworth, Zac Efron e Michael B. Jordan.
“E eu tive uma ideia maluca de que talvez devessem interpretar a si mesmos”, disse o cineasta Clint Eastwood. “Eles têm carisma genuíno. Decidi correr o risco, por que não? Se alguma coisa tivesse dado errado, o que poderiam fazer comigo?”
Três semanas antes das filmagens, Eastwood pediu que os três fossem a uma reunião para discutir a veracidade do roteiro. Mas Eastwood tinha uma câmera, e pediu que eles reencenassem o acontecido. Em seguida, lhes ofereceu a oportunidade de fazerem os seus próprios papéis.
“Não tínhamos pensado nisso nem como piada”, disse Skarlatos, que, como seus amigos, não tinha trabalhado como ator nem em peças escolares. “Quando ele nos convidou, respondemos sim imediatamente, porque não se diz não a Clint Eastwood”.
Stone chegou a duvidar da decisão, durante o primeiro dia de filmagem, na metade do ano passado.
“As primeiras tomadas que fiz deram muito errado, e eu disse para mim mesmo que aceitei a proposta porque quis e que tinha de me concentrar e fazer bem o trabalho. Depois disso, as coisas ficaram mais fáceis.”
A atmosfera tranquila pela qual os sets de Eastwood são conhecidos ajudou a acalmar os nervos dos novatos.
“Eu me tornei especialista em combater a ansiedade”, disse o diretor. “O importante é não abalar o sistema nervoso das pessoas.”
O trio disse que Eastwood também manteve a simplicidade em suas instruções.
“Ele falava conosco como falava com os outros atores e não nos dava muitas instruções em termos de direção”, disse Skarlatos, que contracenou com colegas experientes como Jenna Fischer, no papel de sua mãe, e Judy Greer, como a mãe de Stone.
“Tudo o que nos disse foi que devíamos fazer exatamente o que fizemos no trem. Ele nos deixou fazer nosso trabalho sem interferir, o que foi estranho, porque nosso trabalho não era atuar, antes.” CARREIRA Mas a situação mudou. Os três pretendem continuar atuando —Stone e Skarlatos deixaram as Forças Armadas.
Os novatos receberam conselhos de Eastwood. “Eu disse que, depois das filmagens, eles podiam fazer aulas de interpretação. Isso provavelmente vai atrapalhá-los um tempo, mas no fim dá certo.”
Quanto ao seu futuro, Eastwood não tem nada definido.
Ele começou a trabalhar como diretor em 1971, quando substituiu Don Siegel, que estava gripado, durante as filmagens de “Perseguidor Implacável”. “Pensei que tentaria por um tempo e que chegaria o dia em que eu olharia para a tela e diria ‘argh’.” “Não sei se isso já aconteceu. Mas nunca me entediei.”
Aos 87, ele tampouco descarta voltar a trabalhar como ator, se aparecer um papel interessante. Ainda que não esteja diante das câmeras no filme, um pôster de seu “Cartas de Iwo Jima” decora o quarto de infância de Stone.
“Não quero desviar a atenção do espectador”, disse.
No fim, como disse Dirty Harry em “Magnum 44”, “um homem precisa conhecer suas limitações”.
Pena que Eastwood não soubesse disso ao participar de “Mister Ed”.
“Aquilo não foi um exemplo de grande interpretação, tenho certeza”, ele disse, rindo. “Já faz muito tempo que não vejo aquela cena.” PAULO MIGLIACCI
CRÍTICO DA FOLHA
Clint Eastwood costuma construir seus filmes em torno de um personagem forte. Ele pode ser caubói ou aposentado, o filme pode ser maior ou menor, tanto faz: a construção sempre começa por aí; ela que arrasta a trama.
Isso é que torna “15h17 – Trem para Paris” ao mesmo tempo estranho e fascinante para quem acompanha a obra do cineasta. Como contar uma história em que os três personagens centrais são perfeitos fracassados?
Spencer, Alek e Anthony são amigos de infância unidos pela frustração escolar, três jovens destinados a se tornarem incapazes de qualquer compreensão mais ampla do mundo. Três boçais, em suma, ou “losers”, como chamam os americanos.
Já adultos, dois deles entram para as Forças Armadas. Spencer vai para a Aeronáutica, mas não consegue se firmar numa exigente unidade de salvamento; Alek entra para o Exército e serve no Afeganistão. Numa licença, os dois, mais Anthony, reencontram-se na Europa.
Clint Eastwood nos conduz então a uma viagem turística mais que típica: dentro de um museu não conseguem perceber basicamente nada. Na Alemanha, acreditam que Hitler se matou para evitar o contato com as tropas americanas. De Veneza não captam senão o que lhes mostra os selfies que um deles tira com insistência.
Resumindo, eles se tornam adultos tão simpaticamente bobos quanto eram na escola. E a rigor viram adultos incapazes de sustentar um filme de Clint Eastwood —que, por uma vez, trabalha a partir de seres profundamente desinteressantes.
Eis o que torna o filme fascinante: é o desafio de construí-lo em torno de caras tão satisfeitos com a própria mediocridade. Clint precisa abandonar a ideia de personagem forte para narrar sua trajetória. Isso pode ser árduo. Tem-se a sensação de que a qualquer instante o filme afundará no nada.
Mas eis que algo mudará e a oportunidade para que se tornem heróis surgirá. Por quê? Não se sabe. É como se Clint nos dissesse que a vida é puro mistério. Eles mereceram ser chamados a algo especial? “Merecer não tem nada a ver com isso”, dizia a certa altura o protagonista de “Os Imperdoáveis”.
Esse viés —a vida como puro acaso, feita de ironias, de coisas que não controlamos— foi não raro sugerido ao longo da obra de Clint Eastwood, mas nunca desenvolvido tão explicitamente.
Eis o que faz do longa um acontecimento paradoxal: anuncia uma transformação relevante no trabalho do grande diretor, que agora mergulha no lado obscuro da América para ali encontrar a poesia dos fracassados.
A viagem de trem, seja dito de passagem, propiciará aos rapazes, na vida real, um ato de heroísmo, em 2015, de que decorrerão uma condecoração concedida por François Hollande, então presidente francês, e um desfile em carro aberto pelas ruas de Sacramento, Califórnia, onde nasceram e cresceram.
Ironias do destino: o heroísmo dos boçais saudado por um presidente francês medíocre e depois pelos caipiras de sua cidade. “Trem para Paris” é um filme estranho: filme menor de Clint Eastwood, mas não insignificante. (THE 15:17 TO PARIS) DIREÇÃO Clint Eastwood PRODUÇÃO EUA, 2018, 14 anos QUANDO estreia nesta quinta (8) AVALIAÇÃO bom