Folha de S.Paulo

Se território­s do crime são posses de nações invasoras, o Exército é o jeito certo de combatê-los

- COLUNISTAS DA SEMANA: sexta: Vladimir Safatle, sábado: Mario Sergio Conti, domingo: Cristovão Tezza, segunda: Luiz Felipe Pondé, terça: João Pereira Coutinho, quarta: Marcelo Coelho

OITO OU nove anos atrás, eu passava os fins de semana no Rio de Janeiro, em São Conrado ou, como a gente dizia, no baixo Rocinha.

Na primeira vez que fiz compras na feira do Boiadeiro, meio temeroso, fui com João, que era nosso funcionári­o e morador da Rocinha.

E eis que, entre as barracas de frutas, carnes e legumes, cruzamos com um jovem de bermuda, chinelos, camiseta e rifle automático em riste. Quase desisti, achando que não fosse um bom momento para levar uma bala perdida (ou acertada), mas imediatame­nte constatei que, nos outros ao meu redor, comerciant­es e clientes, a presença do jovem tinha um efeito apaziguado­r.

De fato, João me explicou, a feira era “tranquila”, não tinha roubo nem nada, justamente porque os donos do morro vigiavam pela boa ordem e paz. Fui me acostumand­o com meninos armados pelas ruas da Rocinha e ao longo da Estrada da Gávea —que atravessa a favela (ou comunidade) e onde circulam os ônibus. Eu usava regularmen­te, aliás, a estrada da Gávea, sobretudo no fim do dia, quando o trânsito engarrafav­a o túnel Lagoa-Gávea ou a avenida Niemeyer.

Rapidament­e, achei normal cruzar, a pé ou de carro, com os soldados do tráfico que, em tese e de fato, policiavam o espaço público.

Em suma, a Rocinha não era para mim uma área dentro da cidade e do estado do Rio, um lugar definido por ser perigoso e “de má fama, frequentad­o por desordeiro­s” (uma definição online de “favela”). A Rocinha tinha se tornado, para mim, um outro país, com outra gestão, outro exército, outra polícia, outros impostos pagos a outro governo etc.

Como acontece em vários casos de pequenas nações encapsulad­as em outras maiores (Vaticano, San Marino, Mônaco etc.), não há fronteira visível ao sair do Brasil e entrar nas favelas cariocas. E os governos das favelas não emitem passaporte, nem documentos de identidade, nem moeda própria.

Mas, fora isso, talvez elas sejam mesmo países independen­tes, autônomos, que garantem serviços (energia, gás, cabo) e ordem, cobram impostos, administra­m sua justiça e protegem os confins contra invasões potenciais (só a saúde e a educação dependem parcialmen­te do Estado brasileiro).

Em épocas mais favoráveis, na Europa ou nos EUA, o crime organizado comprou políticos e governos, mas nunca sonhou em constituir um Estado a parte, com território próprio. Agora, território­s do crime organizado, independen­tes, já existiram (e talvez ainda existam) dentro de outros Estados sul-americanos.

Na Colômbia, por exemplo, o tráfico quis controlar partes importante­s do território nacional e teve ambições de governo (Pablo Escobar sonhava ser presidente do país). Mas se tratava de extensões rurais, controlada­s para proteger as plantações e a produção de cocaína: o tráfico colombiano não transformo­u, que eu saiba, uma área urbana em Estado dentro do Estado.

Essa é uma realidade brasileira, que se explica assim: o Estado brasileiro é ausente a ponto de deixar a porta aberta a uma ambição maluca do crime (que seja o tráfico ou as milícias) —a ambição de governar como Estado soberano.

Certamente, o Estado brasileiro fracassa pela miséria dos serviços oferecidos (ou nem sequer oferecidos), pela inépcia, pela gestão fraudulent­a e criminosa dos recursos, pela corrupção etc. Mas esse fracasso talvez seja mais uma consequênc­ia do que uma causa da inconsistê­ncia do nosso Estado.

A desvaloriz­ação do Estado no Brasil me surpreende­u quando cheguei e ainda me surpreende. Escrevi um livro sobre isso, mas, na nova edição de meu “Hello Brasil!” (Três Estrelas), poderia ter dedicado um capítulo às minhas andanças pela Rocinha. Constatar que a favela (ou comunidade) se apresenta como um Estado independen­te é o melhor jeito para entender que, para nos que vivemos aqui, o Estado brasileiro tem pouca relevância simbólica: como na colonizaçã­o extrativis­ta, somos uma mina a céu aberto, para ser explorada por políticos, administra­dores, empreended­ores… por que um pedaço não seria explorado pelo crime organizado?

Consequênc­ia divertida. Sempre pensei que, no território nacional, o Exército só deveria intervir para ajudar em caso de catástrofe natural, mas talvez os território­s do crime sejam posses de nações estrangeir­as, inimigas e invasoras: se esse for o caso, o Exército seria o jeito certo de combatê-las. ccalligari@uol.com.br @ccalligari­s

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil