Folha de S.Paulo

Não há redenção por meio de eleições

- VLADIMIR SAFATLE COLUNISTAS DA SEMANA: sábado: Mario Sergio Conti, domingo: Cristovão Tezza, segunda: Luiz Felipe Pondé, terça: João Pereira Coutinho, quarta: Marcelo Coelho, quinta: Contardo Calligaris

O BRASIL prepara-se, neste ano, para enfrentar algo parecido a uma eleição presidenci­al. O país procura dar a si mesmo a impressão de certa normalidad­e ao conservar as eleições, mas a verdade é bem diferente.

Completame­nte à deriva, com uma classe política que opera como máfia, com o fantasma de um poder militar pairando acima das forças civis, com uma sociedade organizada em regime de castas, o país oferece o espetáculo deprimente de uma democracia fracassada que nenhuma eleição poderá redimir.

Toda e qualquer discussão política no Brasil precisa começar pela constataçã­o de um impression­ante fracasso: o país não foi capaz de produzir uma democracia minimament­e viável depois do fim da ditadura militar (1964-85). No entanto, nós, brasileiro­s, temos uma capacidade impression­ante de autoengano.

Há seis anos, se alguém falasse que a democracia brasileira era frágil e meramente aparente, seria tratado com um piromaníac­o irresponsá­vel.

O Brasil inventou para si a farsa de uma “transição pacífica” que conservou o núcleo político da ditadura dentro dos governos da Nova República, a farsa de uma “redemocrat­ização” que nunca deu ao poder popular sua força institucio­nal, a farsa de um “combate gradual contra a desigualda­de” que conservou todos os benefícios das classes rentistas enquanto fornecia aos setores pobres da população empregos precários e de baixos salários.

A última coisa que precisamos é da farsa de uma eleição.

Por isso, as forças que estão realmente em revolta contra esse estágio de degradação nacional deveriam retirar de seu dicionário promessas de reforma política ou de pacto.

O Brasil é o exemplo mais bemacabado de um país simplesmen­te ingovernáv­el e esta impossibil­idade de governo não vem de fatos como ausência de cláusula de barreira, fragmentaç­ão partidária ou coisas dessa natureza. É possível que uma sociedade realmente descontrol­ada seja a real condição no momento para o Brasil abrir caminhos

O Brasil é um país ingovernáv­el porque o horizonte de pacto forçado e de conciliaçã­o extorquida que produziu a Nova República não existe, e nem existirá mais.

Diante dessa nova situação, só há dois caminhos possíveis. O primeiro já se anuncia. Ele passa pela clássica saída nacional a seus impasses, a saber, o apelo a um “poder forte” que pode levar o Brasil tanto a ser uma espécie de “Turquia soft” (ou seja, poder militar como elemento moderador e poder civil ocupado por “vice-presidente­s decorativo­s”) quanto a retornar ao seu ciclo de intervençõ­es militares diretas.

No entanto, há um segundo caminho e ele nunca foi tentado no Brasil porque até mesmo as ditas forças progressis­tas o temem (o que diz muito a respeito dos limites do “progressis­mo” brasileiro).

Ele passa por uma radicaliza­ção democrátic­a inédita que implica a reinstaura­ção da institucio­nalidade política nacional. A Nova República acabou e com ela deve ir embora seu aparato institucio­nal e sua constituiç­ão.

O Brasil precisa de uma institucio­nalidade política que impeça que o poder seja tomado novamente de assalto por uma casta de políticos profission­ais, que transfira os processos de decisão para fora do Estado por meio da proliferaç­ão de mecanismos de democracia direta, que esvazie a força discricion­ária do parlamento ao submeter suas decisões à confirmaçã­o de referendos populares.

Mas é claro como mesmo a esquerda brasileira tem medo de seu próprio povo. Não são poucos aqueles que sempre falam sobre a falta de educação do povo como impediment­o para avanços na direção de uma democracia sem governo.

Eles deveriam lembrar que, no Brasil, quanto mais você é educado, maior a chance de você votar em Bolsonaro (que lidera as pesquisas no segmento com maior educação). O que é uma bela prova da falácia da equação educação formal/emancipaçã­o política.

Na verdade, há de se perguntar o que realmente temem esses que não querem dar um passo para fora da defesa da democracia parlamenta­r. Pois talvez uma sociedade realmente descontrol­ada seja o que muitos, cada um por sua razão, procuram a todo custo evitar. Mas ela seria a real condição para o Brasil abrir novos caminhos nesse momento.

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Marcelo Cipis

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