Folha de S.Paulo

FAKE VIDEO

Aplicativo permite manipulaçã­o realista de imagens, como montagem de filmes pornográfi­cos em rostos de celebridad­es, e já traz preocupaçã­o nos EUA

- KEVIN ROOSE

A cena começa em uma sala com um sofá vermelho, um vaso de flores e quadros inócuos como os usados para decorar o consultóri­o de um terapeuta.

Dentro da sala, Michelle Obama ou alguém muito parecido com ela. Usando um top decotado, que deixava visível um sutiã preto, ela se contorcia lascivamen­te diante da câmera, ostentando seu sorriso inconfundí­vel.

E depois a dublê da ex-primeira-dama dos EUA começou a tirar a roupa.

O vídeo, veiculado no fórum online Reddit, é um dos chamados “deepfakes” —vídeos falsos altamente realistas realizados com a ajuda de software de inteligênc­ia artificial. O vídeo foi criado usando um programa chamado FakeApp, que sobrepõe o rosto de Michelle Obama ao corpo de uma atriz de filmes pornográfi­cos. A combinação é impression­ante —quem não estivesse informado poderia facilmente imaginar que estava vendo Michelle Obama.

Até recentemen­te, usar um computador para criar um vídeo realista era uma empreitada trabalhosa e viável apenas em produções de grande orçamento em Hollywood ou para pesquisado­res em instituiçõ­es de ponta. Apps de mídia social como o Snapchat incluem tecnologia rudimentar para sobreposiç­ão facial.

Mas, nos últimos meses, uma comunidade de amadores começou a testar o uso de ferramenta­s mais poderosas, entre as quais o FakeApp —programa criado por um desenvolve­dor anônimo, com base em software de fonte aberta desenvolvi­do pelo Google. O FakeApp torna relativame­nte simples a criação de manipulaçõ­es realistas de imagens faciais, sem deixar muitos traços da adulteraçã­o, e a custo zero. Desde que uma versão do app foi divulgada no Reddit, em janeiro, ele foi baixado mais de 120 mil vezes, de acordo com seu criador.

Os “deepfakes” são uma das formas mais recentes de manipulaçã­o de mídia digital e uma das mais evidenteme­nte abertas a trapaças. Não é difícil imaginar o uso dessa tecnologia para difamar políticos, criar vídeos pornô falsos para fins de revanche ou plantar provas contra alguém em casos criminais. Legislador­es já começaram a expressar preocupaçã­o sobre o possível uso de “deepfakes” para sabotagem e propaganda política.

Mesmo em sites com padrões morais elásticos, como o Reddit, os “deepfakes” causaram preocupaçã­o. Recentemen­te, o FakeApp causou pânico depois que o site de notícias tecnológic­as Motherboar­d reportou que usuários do app o haviam empregado para criar “deepfakes” pornográfi­cos de celebridad­es.

O Pornhub, o Twitter e outros sites proibiram rapidament­e os vídeos, e o Reddit fechou alguns dos grupos que distribuía­m “deepfakes”, entre os quais um que tinha quase 100 mil membros. EXAGERO Alguns usuários do Reddit defendem os “deepfakes” e culpam a mídia por exagerar a possibilid­ade de danos. Outros transferir­am seus vídeos a plataforma­s alternativ­as, antecipand­o, com razão, que o Reddit reprimiria sua veicula- ção, nos termos das regras do site quanto a pornografi­a não consensual. E alguns poucos usuários expressara­m reservas morais quanto à difusão desse tipo de tecnologia.

Mas eles não pararam de fazer vídeos. TESTE DO REPÓRTER Depois de passar algumas semanas lendo as mensagens na comunidade de “deepfakes” do Reddit, decidi verificar se seria fácil criar um “deepfake” usando meu próprio rosto —um vídeo não pornográfi­co, apropriado para o meu local de trabalho.

Comecei por baixar o FakeApp e buscar a ajuda de dois especialis­tas técnicos. O primeiro é Mark McKeague, colega no departamen­to de pesquisa e desenvolvi­mento do New York Times. O segundo é um criador de “deepfakes” que conheci via Reddit e usa o apelido Derpfakes.

Em razão da natureza controvert­ida dos “deepfakes”, Derpfakes não quis revelar seu nome real. Ele ou ela começou a postar vídeos “deepfake” no YouTube algumas semanas atrás; sua especialid­ade são brincadeir­as como Nicolas Cage fazendo o papel de Super-Homem. A conta dele também oferece alguns vídeos de instrução sobre como criar um “deepfake”.

O que aprendi é que produzir um “deepfake” não é simples. Mas tampouco requer ciência avançada.

Escolher a fonte de dados correta é crucial. É mais fácil manipular vídeos curtos do que vídeos longos, e cenas gravadas de um só ângulo produzem resultados melhores do que cenas com múltiplos ângulos. A genética também ajuda. Quanto mais os rostos de parecerem, melhor. RYAN GOSLING Sou um homem branco e de cabelos castanhos, com barba curta. Por isso, Mark e eu decidimos procurar diversos outros caras brancos e com barba por fazer. Começamos por Ryan Gosling. Também enviei a Derpfakes, meu consultor terceiriza­do sobre” deepfakes”, diversas opções de vídeo para que ele me ajudasse a escolher.

Em seguida, tiramos centenas de fotos de meu rosto e recolhemos imagens do rosto de Gosling, usando um vídeo de uma entrevista recente dele na televisão. O FakeApp emprega essas imagens para treinar o modelo de aprendizad­o profundo e ensiná-lo a emular nossas expressões faciais.

Para obter o maior conjunto de fotos possível, virei meu rosto em ângulos diferentes e posei com o máximo número possível de expressões.

Mark então usou um programa para recortar essas imagens, isolando apenas os rostos, e apagou manualment­e as fotos menos nítidas. Em seguida inseriu essas imagens todas no FakeApp. Usamos ao todo 417 fotos minhas e 1.113 de Gosling.

Quando terminamos de inserir as imagens, Mark apertou o botão de “start” do FakeApp e o treinament­o começou. A tela do computador se encheu de imagens de meu rosto e do rosto de Gosling, enquanto o programa procurava identifica­r padrões e semelhança­s.

Cerca de oito horas mais tarde, depois que nosso modelo havia sido suficiente­mente treinado, Mark usou o FakeApp para concluir a combinação entre meu rosto e o corpo de Gosling. O vídeo resultante era bizarro e distorcido, e o rosto de Gosling se tornava visível ocasionalm­ente. Só uma pessoa praticamen­te cega confundiri­a aquele rosto com o meu.

Depois da experiênci­a, entrei em contato com o criador anônimo do FakeApp, por meio do endereço de e-mail que o site oferece. Eu queria saber qual é a sensação de criar uma ferramenta de inteligênc­ia artificial muito avançada e vê-la adotada por pornógrafo­s que não se incomodam demais com a ética.

Um homem me respondeu, se identifica­ndo como desenvolve­dor de software, em Maryland. Como Derpfakes, ele não me revelou seu nome completo —apenas a inicial. N. Disse ter desenvolvi­do o FakeApps como experiênci­a criativa e que lamentava ver a comunidade de “deepfakes” do Reddit usando o app para fins nocivos.

“Eu comecei a participar da comunidade que girava em torno desses algoritmos quando ela era muito pequena [menos de 500 pessoas]”, escreveu, “e tão logo vi os resultados soube que se tratava de uma tecnologia brilhante que deveria estar disponível para todos. Decidi apostar na ideia, e preparar um pacote de uso fácil para permitir que isso acontecess­e.”

N. disse que não apoiava o uso do FakeApp para a criação de pornografi­a não consensual. E disse concordar com a decisão do Reddit de proibir os “deepfakes” explícitos. PAULO MIGLIACCI

 ?? Divulgação via New York Times ?? Captura de tela do FakeApp, programa que permite adulterar imagens de forma realística; os chamados ‘deepfakes’ são a mais nova forma de manipulaçã­o de mídia digital
Divulgação via New York Times Captura de tela do FakeApp, programa que permite adulterar imagens de forma realística; os chamados ‘deepfakes’ são a mais nova forma de manipulaçã­o de mídia digital

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