Folha de S.Paulo

ENTR EF ACAS, ALGODÃO

- BEATRIZ RESENDE

FOLHA

Houve quem descrevess­e como um thriller, mas para a escritora franco-marroquina Leïla Slimani é uma tragédia grega. Não importa o que os personagen­s façam, no fim de tudo as crianças vão morrer. E assassinad­as pela babá.

Não é um spoiler porque a cena está no começo de “Canção de Ninar”: a mãe chega em casa e vê a confusão, com vizinhos, ambulância e polícia. O menino foi morto, e a menina não vai sobreviver.

“Para mim, seria impossível fazer um bom livro sem tirar essa cena da frente. Seria horrível escrever sabendo que chegaria a esse ponto. É um tragédia. É claro que vai acontecer. Não há como fugir. A questão é saber por que uma família tão comum viveria uma tragédia dessas”, diz a autora à Folha.

Slimani, que tenta olhar com sensibilid­ade o universo das babás, é uma das convidadas da Flip (Festa Literária Internacio­nal de Paraty), que acontece de 25 a 29 de julho.

Ela foi a vencedora do Goncourt, principal prêmio literário francês, em 2016 —de lá para cá, já vendeu cerca de 600 mil exemplares no país e foi traduzido para 40 idiomas.

No livro, a autora conta a história de uma família francesa em que a mãe, depois de abrir mão da carreira e se sen- tir oprimida pela rotina, resolve voltar a trabalhar. O casal, então, resolve contratar Louise, que se revela a princípio uma babá perfeita. A inspiração foi um caso real que aconteceu em Nova York, em 2012.

“Queria transforma­r minha própria experiênci­a tanto como pessoa que foi cuidada por uma babá quanto alguém que tem uma babá para cuidar dos seus filhos. É uma relação ambígua. Elas criam filhos que não são seus. Estão na intimidade, mas não pertencem àquele lugar.”

Slimani também quis analisar a dinâmica de poder nessa relação. E mostra que não é um poder em apenas uma direção. As babás, diz a autora, também o exercem sobre os patrões.

“Ela é babá das crianças, mas também dos pais. Ela cuida deles, cozinha, faz a vida mais confortáve­l.”

É interessan­te a origem dos personagen­s. Enquanto Myriam, a patroa, é norteafric­ana, Louise é branca — algo incomum numa França de tantos imigrantes em empregos assim.

A mudança das posições usuais de cada uma reforça um sentimento de isolamento e humilhação da babá. “Seria óbvio a patroa ser branca. Queria evitar esse clichê. A verdade é que é sim um emprego de imigrantes e, se você é branco e o faz, você se sente humilhado.”

A escritora também tenta mostrar, pela experiênci­a da patroa, como a maternidad­e pode ter seu lado sombrio — em que é possível sentir solidão ao lado dos filhos.

Slimani conta achar curiosa como a reação de cada leitor varia de acordo com sua classe. Teve medo que as babás do seu bairro se sentissem criticadas, mas elas sempre pedem autógrafos. Já numa livraria, viveu uma cena que achou interessan­te.

“Uma senhora que parecia rica me disse: ‘Nossa, essas babás são terríveis! Vejam o que elas fazem conosco!’. Como se dissesse que nós somos escravas das nossas babás”. AUTORA Leïla Slimani TRADUÇÃO Sandra M. Stroparo EDITORA Tusquets QUANTO R$ 41,90 (192 págs.)

ESPECIA LP ARA A FOLHA

Sobre João Almino, diz-se sempre que se tornou o romancista de Brasília. Mais do que isso: o escritor colocou no universo afetivo da literatura brasileira a cidade sem calçadas do delírio modernista.

Em “Cidade Livre”, de 2010, voltou aos inícios da cidade, aomomentod­aconstruçã­o,do monumento que se ergueu sobre restos da primeira, desordenad­a, pecadora, onde o crime ainda era o crime comum, praticado por homens comuns.Aquela,diz,foiaprimei­ra cidade descartáve­l, “construída para ser destruída”.

Em “Entre Facas, Algodão”, primeiro romance de João Almino já membro da Academia Brasileira de Letras, a vida em Brasília e o casamento do narrador, advogado nordestino de 70 anos que venceu na capital, já se esgotou. Cansado do presente, o passado reaparece com interesse.

O diário, que dá forma ao romance, registra secamente as decisões, que são também partilhada­s pelo Facebook.

Dois feriados seguidos em Brasília —“Vou aqui de feriado em feriado, nem sei por quê. Hoje imagino que haja discursos e protestos”— evocam a rede branca sem ninguém balançando no alpendre movida pelo Nordeste, vento que chegava forte na casa do passado.

Nessa idade, a cabeça por vezes falha, as paisagens de secura e árvores calcinadas se misturam, mas “os sonhos têm memória” e surge a lembrança de um amor de juventude, da casa da família.

Algumas trocas de WhatsApp, e Tabatinga é deixada para trás em voo para Fortaleza e de lá, via Mossoró, para a fazendola comprada, lugar onde passara a infância, na intenção de plantar algodão.

Dentre as várias razões para a mudança está uma necessidad­e de vingança. Alguma tragédia a envolver pai, mãe e madrinha.

O que torna a narrativa especial e confirma uma dicção única é a criação do espaço por onde evolui a narrativa, os lugares por onde se movem os personagen­s, a geografia que entranha nas relações.

Só que desta vez é a voz do sertanejo que anota belezas repentinas, a feiura das localidade­s abandonada­s, o rio que não dá passagem, o meio do mato onde não se pode conseguir suportar a solidão, nem mesmo depois do wi-fi.

Nachegada,oespaçoéme­smo do passado e do presente: a lembrança do açude de Orós arrombado, a visão do cemitério ainda pobre, o rio que impede o caminho, os caminhos sinuosos e esburacado­s. Na cidade, as misérias de sempre estão só mais espalhadas.

Nesse Brasil de diferentes temporalid­ades que se juntam num presente impregnado ainda de perversas heranças não reparadas, os crimes mudaram apenas de armas.

As facas, que faziam jorrar tanto sangue, foram substituíd­as por outros recursos que preferem sangrar os cofres públicos. Os criminosos, os mandantes, o romance nos mostra, continuam os mesmos.

O homem velho deixa o Nordeste: “meu espírito secou, como a paisagem do sertão no auge do verão”. Retorna a Brasília. Talvez o acaso traga de volta uma emoção vivida. Mas está difícil. BEATRIZ RESENDE AUTOR João Almino EDITORA Record QUANTO R$ 39,90 (192 págs.) AVALIAÇÃO muito bom

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Lionel Bonaventur­e/AFP A escritora franco-marroquina Leïla Slimani, ganhadora do prêmio Goncourt em 2016

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