Retrospectiva de Visconti em SP exibe 17 filmes tal e qual ele quis: tela enorme e sem os cortes impostos
A PRIMEIRA frase que se escuta é “Agora e na hora da nossa morte”. De joelhos no chão leitoso de ladrilhos, a família repisa em latim a ladainha: Nunc et in hora mortis nostrae. Júpiter fulgurante, Marte carrancudo e a lânguida Vênus observam dos afrescos no teto a gente engalanada que reza o terço.
Um falatório na sala vizinha se sobrepõe à arenga da família rica e provinciana. Cada vez mais altas, as vozes da história acabam por abafar o rito religioso: rebeldes desembarcaram no porto, a insurreição popular incendeia a terra, um soldado morto junta moscas no jardim do Príncipe.
Assim começa “O Leopardo”, em cartaz na Retrospectiva Luchino Visconti, que vai até quartafeira (14) no Cinesesc, em São Paulo. São 17 filmes, exibidos tal e qual o cineasta quis: em tela enorme, cópias de primeira e na íntegra, sem os cortes impostos por produtores. Grande arte para o grande público.
A visão de conjunto permite avaliar essa arte 41 anos depois da morte de Visconti. Acompanha-se o trajeto do neorrealismo ao neoclássico; da trilogia siciliana (“Obsessão”, “A Terra Treme”, “O Leopardo”) à alemã (“Os Deuses Malditos”, “Morte em Veneza”, “Ludwig”); da crítica à indústria cultural (“Obsessão”) à sua subversão (“O Leopardo”).
O fato histórico que interrompe o clã Salina é a aurora da revolução burguesa. As tropas de Garibaldi desembarcaram em Marsala e avançam rumo a Palermo. O destino dos latifundiários que há séculos dominam a província parece selado. Ainda que com retardo, o povo e o progresso chegaram à terra atrasada. Vida nova a partir de agora
A derrocada da aristocracia feudal se confunde com a decadência do Príncipe Fabrizio (Burt Lancaster) que não tem ânimo para resistir à perda de poder. Mas eis que Tancredi (Alain Delon), seu sobrinho predileto e falido, adere à revolta e galga postos na nova ordem.
“O Leopardo” se baseia no romance de Lampedusa, mas a adaptação de Visconti pende para Gramsci, do qual usa a noção de “transformismo”, o tempo que não muda porque o atraso é geral.
Para Gramsci, a unificação da Itália foi transformismo: a incorporação à classe dominante de uma parte dos representantes do progresso. Na Sicília, os senhores da terra cooptaram a burguesia triunfante —e vice-versa— para manter a exploração.
De garibaldino de primeira hora, Tancredi agora massacra seus companheiros e, sob os auspícios do Príncipe, fica noivo da bela e vulgar Angelica (Claudia Cardinale), a filha do novo chefe burguês. Num baile faustoso, se sela a aliança entre os descapitalizados e os capitalistas.
A velha classe se salva, mas a vida nova morre. Embora o reinado dos Bourbon chegue ao fim, em vez da república vem a monarquia da Casa de Saboia. A liberdade, igualdade e fraternidade subsistem como retórica. Tudo muda para que a exploração continue.
Por escrito, o transformismo pode parecer um esquema que combina a chegada tardia do capitalismo a uma sociedade atrasada pelo latifúndio, e gera nobres decadentes e trabalhadores impotentes. Com Visconti, a decadência e a impotência estão vivas.
Estão vivas na risada acafajestada da Angelica de Claudia Cardinale, No álacre cinismo do Tancredi de Delon. Decadência e impotência estão vivas, sobretudo, no conformismo amargo do Príncipe de Burt Lancaster.
O seu Salina é “O Filho Punido”, título da pintura de Greuze que ele contempla durante o baile, na biblioteca. A tela mostra um pai agonizante, cercado pela parentela, no momento em que seu filho pródigo volta para casa. O Príncipe não vê no quadro o tema bíblico.
Salina prefigura, isso sim, o seu futuro, a sua própria morte, e a da sua classe, ambos inúteis no presente de pobreza material e miséria moral, que ele se recusa a enfrentar. Para o Príncipe, a punição se dá agora: enquanto há morte, há esperança.