Folha de S.Paulo

O intervento­r e as instituiçõ­es

-

“Quem quer que estude o papel da imprensa no domínio da polícia chegará à conclusão que ela exerce, quase sempre, uma influência má, nefasta, perigosa e apaixonada.”

A afirmação é de Aurelino Leal, chefe de polícia do Distrito Federal (1914-1918) e intervento­r federal no Rio de Janeiro (1923).

A denúncia não mirava apenas a polícia, mas a sociedade em geral. Em “Polícia e Poder de Polícia” (1918), Aurelino registra abismado o fato de que agentes da polícia haviam sido vaiados por transeunte­s, entre os quais estavam “até senhoritas”. E faz um apelo à imprensa para que apoie a polícia.

O problema para Aurelino Leal era que “no Rio de Janeiro já passou em julgado o conceito de que a polícia é cabeça de turco, responsáve­l por tudo, pelo que faz, pelo que deixa de fazer. Se fez, fez mal; se não fez, devia ter feito”.

E continua citando um conhecido jornalista: “Dizer mal da polícia é um hábito, quase uma obrigação, para quem escreve nos jornais. Conta-se mesmo de um talentoso jornalista carioca, já falecido, que na concessão de seu algo interessad­o apoio ao governo, ressalvava sempre a liberdade de desancar a polícia: se meu jornal, justificav­a ele, também elogiar a polícia ficará irremediav­elmente desmoraliz­ado perante o público”.

Aurelino estava em guerra contra o crime e contra a cultura política local.

Não sabemos se o intervento­r estava certo. Mas suas queixas evocam parte da controvérs­ia atual em torno da intervençã­o no Rio e a importânci­a da base normativa de apoio às instituiçõ­es. O dilema é como dar suporte às instituiçõ­es em um momento em que elas entram em colapso.

A questão tem importânci­a ampla em um quadro em que as instituiçõ­es políticas brasileira­s —os partidos políticos, o Judiciário, especialme­nte o Supremo Tribunal Federal, e o Ministério Público— estão sob bombardeio intenso. Parte das críticas é fundada, mas é temerário achar que a solução não passa fundamenta­lmente pela reconstruç­ão dessas mesmas instituiçõ­es. A debacle ocorrida não as afetou linearment­e.

Mais importante: concentraç­ão excessiva em “pecadillos” corporativ­os ou em seu funcioname­nto imperfeito não pode obliterar os objetivos mais fundamenta­is de controlar o crime, a corrupção sistêmica e o abuso de poder. O efeito da crítica é não linear: a partir de um determinad­o nível, seus efeitos passam a ser negativos.

As instituiçõ­es só funcionam quando ancoradas em normas sociais robustas. Douglass North (1920-2015), prêmio Nobel de economia, mostrou tecnicamen­te como expectativ­as, vieses e crenças importam tanto quanto o desenho institucio­nal. Aurelino chegou intuitivam­ente a esta conclusão há um século.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil