Jessé, Sérgio e Raymundo
EM SEU novo livro, “A Elite do Atraso”, o sociólogo Jessé de Souza propõe uma reinterpretação da história brasileira que ilumine nossos problemas políticos atuais. A influência do livro sobre a esquerda tem sido considerável, mas não é claro que Jessé e a esquerda estejam fazendo bem um ao outro.
Jessé tem razão, muita razão, em duas coisas: a desigualdade é um problema mais importante para o Brasil do que a corrupção. E tem gente que faz discurso sobre patrimonialismo para jogar a culpa de todos os nossos problemas no Estado. O resto do livro não é tão bom. Em primeiro lugar, para reafirmar sua originalidade ao propor tudo isso, Jessé dá uma boa avacalhada na história do pensamento social brasileiro. Quero supor, por exemplo, que a nota de fim sobre a obra de Francisco Weffort tenha sido digitada sem querer sentando sobre o teclado do celular. Tudo sobre a USP está errado. de sua própria reflexão.
Jessé tem razão em dizer que o conceito de patrimonialismo, tal como aparece no grande fera Max Weber, não equivale ao de corrupção: os monarcas antigos usavam o dinheiro público como se fosse deles porque, de fato, essa era a regra. Corrupção é quando você faz isso sob um Estado burguês moderno. O patrimonialismo descreve, portanto, situações em que as esferas econômica e política ainda não são bem modernas.
Os autores que introduziram o conceito de patrimonialismo na análise da história brasileira, Sérgio Buarque de Holanda e Raymundo Faoro, escreveram livros de história que tratavam justamente desse processo de diferenciação no caso brasileiro. Como em toda parte, ele foi longo, cheio de retrocessos, doloroso e incompleto.
Mas tanto SBH quanto Faoro tinham a esperança de que a democracia nos livrasse dos resquícios da tradição patrimonialista. Era, aliás, exatamente porque os socialdemocratas Faoro (ex-colunista de Carta Capital) com o legado da escravidão que pediam o fim da promiscuidade entre o Estado e a elite econômica.
Se o leitor tiver curiosidade, procure online o programa de governo do PT na eleição de 1989, fascículo sobre economia, último parágrafo da página 25 do PDF, para notar a influência dessa tradição de pensamento.
Até aí, tudo é debate de alto nível, bacana o Jessé ter puxado o assunto. O livro fracassa mesmo é na tentativa de iluminar nossos debates contemporâneos.
Há, por exemplo, uma classificação dos grupos que compõem a classe média brasileira. Jessé não nos explica que critérios utilizou na confecção da tipologia, mas é meio esquisito que o exemplo do grupo “protofascista” seja Deltan Dallagnol e que Fernando Haddad exemplifique a classe média crítica. Daí em diante: pelo FBI.
Em que pese a discussão teórica, portanto, Jessé nos oferece uma discussão muito pobre, muito vulgar, da política brasileira. E entender nossa política, como os companheiros Sérgio e Raymundo sempre souberam, é fundamental para entender por que o legado da escravidão nunca foi superado.