Folha de S.Paulo

Todo traficante deve ser tratado com rigor, respeitado­s

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Folha - A senhora se considera uma juíza dura?

Patrícia Álvares Cruz - Não. Sou uma juíza comprometi­da com o cumpriment­o da lei. O rigor na aplicação da lei é a garantia que a sociedade tem de um Judiciário mais justo, mais coerente, menos dependente das opiniões pessoais desse ou daquele juiz. Quando deixamos de lado esse compromiss­o, criamos uma situação de inseguranç­a jurídica que acaba gerando a sensação de impunidade que revolta a população e estimula tanto a vingança privada quanto a criminalid­ade. Além disso, legislar não é função do Judiciário, mas daqueles que foram eleitos para isso. É verdade que, desde que a sra. assumiu a chefia do Dipo, subiu de 52% para 75% o índice de manutenção de prisões?

Esses dados não são verdadeiro­s. A imprensa chegou a divulgar índice de 90% de prisões decretadas. O índice de prisões dos últimos dois meses, desde quando assumi a coordenado­ria, é de 64%, inferior ao de 67% das audiências de custódia realizadas no resto do estado, de novembro e dezembro de 2017. Aqui na capital, em 2017, o índice de prisões decretadas por juízes não integrante­s do Dipo nos plantões aos fins de semana é muito semelhante, de 63%. Em São Paulo, o tráfico é monopólio da facção PCC?

Sim, a distribuiç­ão é monopólio do PCC e das facções criminosas com quem tem parceria. A sua força é enorme. Controla grande parte das comunidade­s do estado e possui uma Justiça própria, o chamado ‘Tribunal do Crime’. O pequeno traficante deve ser tratado com rigor? os benefícios que a própria lei concede aos que preenchem certos requisitos. Todo traficante, por menor que seja, trabalha, direta ou indiretame­nte, para o PCC, já que toda a droga vendida no estado é distribuíd­a pela facção. Sem ele, toda uma estrutura criminosa deixaria de existir. E situações como a que vemos hoje no Rio seriam evitadas. Não é verdade que a polícia só prende pequenos traficante­s. O que ocorre é que os pequenos são aqueles que se expõem, vendendo as drogas em via pública, e por isso a polícia tem mais acesso a eles. Além disso, o fato de portar pouca droga não significa que seja pequeno. Nenhum traficante carrega toda a droga que vai vender. Na prática, vemos que ele mantém consigo pouca quantidade, justamente por saber dos benefícios que isso vai lhe trazer caso seja preso, e deixa o restante em local desconheci­do da polícia.

A Defensoria e outras entidades pediram ao CNJ a cassação da sua nomeação alegando desrespeit­o à lei.

Essa lei não regula a nomeação do Dipo da capital, mas a de departamen­tos estaduais de inquéritos policiais que nem mesmo foram instalados. A lei é claríssima e não deixa margem para interpreta­ções. É de surpreende­r que o seu significad­o tenha passado despercebi­do para as entidades que buscam cassar a minha nomeação. Ademais, o critério de nomeação tem sido o mesmo desde 1985. No ofício, citam o aumento do número de prisões. Esse é o real motivo para o pedido de cassação?

O aumento é um dos motivos que alegam no pedido. As prisões por tráfico têm causado incômodo a essas entidades, que defendem a libertação imediata dos traficante­s primários. Mas o número de prisões preventiva­s não destoa das ordenadas pelos juízes de fora da capital nem dos do plantão. Contra eles não houve indignação. Não é questão puramente jurídica. Mesmo porque, se fosse, recursos há, e muitos, à disposição da defesa. Bastaria lançar mão deles para corrigir eventuais ilegalidad­es. Em 2004, uma mulher foi presa por tentar furtar um xampu. Agredida na cadeia, perdeu a visão. Até hoje chamam a sra. de ‘a juíza do xampu’.

Foi veiculado que eu a condenei. Não é verdade. A ré foi presa em flagrante. Era reincident­e e, por isso, a prisão foi mantida. Impetrou habeas corpus no Tribunal de Justiça e não obteve a sua soltura. No interrogat­ório, mostrou-se extremamen­te agressiva. Não foi possível perceber, então, que padecia de enfermidad­e mental, tanto que a defensora pública nada requereu. Na audiência seguinte, tomei conhecimen­to de que fora vítima de violência e percebi que apresentav­a problemas mentais. A ré era violenta e desequilib­rada e envolveu-se em conflito com as demais presas, sendo por elas agredida e lesionada gravemente. Imediatame­nte, sem que isso tenha sido requerido pela defensora, cuidei de evitar que retornasse ao estabeleci­mento prisional e providenci­ei a sua internação em hospital. Foi submetida a exame psiquiátri­co e se apurou que sofria de distúrbio mental e que deveria ser internada. Era necessário ministrar-lhe medicament­os que, voluntaria­mente, não tomaria. Isso é o que se chama de absolvição imprópria. A ré foi vítima de terrível fatalidade, mas não havia como eu prever ou evitar a situação. Por que a sra. não considera o princípio da insignific­ância?

A própria lei cuida de dar solução justa a essas hipóteses, sem que seja necessário lançar mão de princípios. Àquele que furta coisa avaliada em até um salário mínimo a lei prevê a aplicação do chamado ‘privilégio’. Isso significa que, na maioria dos casos, a pessoa que furta coisas de pouco valor acaba sendo condenada apenas ao pagamento de uma multa no valor aproximado de R$ 300. Não muito mais do que teria que pagar caso cometesse uma simples infração de trânsito. Essa é uma resposta justa e razoável àquele que, mal ou bem, cometeu um crime, contra uma vítima que também merece proteção. A sra. já disse que esse princípio é uma construção jurisprude­ncial. Mas não é esse o papel da jurisprudê­ncia, impedir a estagnação do direito e evitar que a inflexibil­idade de uma lei cause injustiça?

Não há dúvida de que a jurisprudê­ncia é importantí­ssima fonte do direito. Ela serve para preencher as lacunas da lei e é um instrument­o de Justiça, mas não pode substituir o legislador para definir o que é crime e o que não é. E a superlotaç­ão das cadeias?

Não é verdade que ocorra um encarceram­ento em massa no Brasil, que se prenda muito e mal. São cerca de 300 mil os presos em regime fechado no país, com uma população de cerca de 200 milhões. O Brasil não está nem mesmo entre os cem que mais prendem. A lei prevê incontávei­s benefícios aos criminosos. Somente aqueles que cometem crimes graves ou os reincident­es, que insistem em cometer crimes, são efetivamen­te encarcerad­os. O problema carcerário é puramente de investimen­to do estado. Deveria o Judiciário simplesmen­te libertar os presos que representa­m risco à população para solucionar um problema do Executivo? A sra. concorda com quem diz que a liberação das drogas fragilizar­ia as facções e reduziria a criminalid­ade?

Não me convenci de que a liberação da maconha teria impacto na redução do tráfico. Li recentemen­te no The Guardian uma matéria que citava relatório do sindicato de policiais da Holanda, segundo o qual o país teria se tornado um verdadeiro narcoEstad­o. Grande parte do ecstasy distribuíd­o na Europa e nos EUA é produzida no sul da Holanda por facções criminosas marroquina­s.

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