Folha de S.Paulo

A mística é a busca de refazer o mundo onde as coisas se transfigur­am na face de Deus

- COLUSEMANA

QUALQUER PESSOA que decida se deter de modo um pouco mais atento sobre o tema da religião e da mística perceberá que ele está longe de ser óbvio. Um dos pecados do mundo contemporâ­neo é sua pressa “ontológica”. Não tenhamos pressa, pelo menos hoje.

A ideia de que mística seja assunto simples e objeto de pessoas incultas é evidência de pressa intelectua­l e pobreza de repertório. As duas andam juntas. A inteligênc­ia alocada na tentativa de entender o que as pessoas querem dizer por um conhecimen­to direto da divindade (vou simplifica­r os termos, não vou contemplar os maníacos da pluralidad­e hoje) é enorme e múltipla, em todas as religiões históricas.

Dentre os muitos especialis­tas em mística (judaica, no caso), Gershom Scholem (1897-1982) é um dos maiores. Considerad­o fundador do estudo acadêmico da cabala, Scholem hoje, segurament­e, ficaria chocado ao ver a cabala ser usada como fórmula de autoajuda feita ao sabor do consumidor. Cabala como consultora de sucesso, de saúde, de alimentaçã­o balanceada, enfim. Melhor evitarmos pronunciar a palavra cabala até ela passar de moda.

A teoria da religião de Scholem e o lugar da mística nela (principalm­ente a judaica) são vastamente conhecidos, inclusive por conta de sua hipótese “herética” acerca da origem da mística em geral, e, especifica­mente, da mística judaica.

Para Scholem, as religiões têm, grosso modo, três grandes estágios. O primeiro, o mítico, se caracteriz­a por envolver o homem, a natureza e as coisas num todo permeado pela presença das divindades. Cada gesto do mundo carrega a assinatura dos deuses. O homem, nesse habitat naturalmen­te espiritual, se sente acompanhad­o e acolhido.

O segundo, doutrinári­o, social, político e racional (mais propriamen­te “histórico”), é o momento em que as grandes religiões se constituem como tecido social constituti­vo da vida. Nesse estágio, por exemplo, se dá o surgimento da Torá no judaísmo. Os deuses (e Deus, nesse processo) se distanciam, tornam-se abstratos, normatizad­ores, organizado­res das coisas e da vida. O acolhiment­o presente nas formas míticas desaparece, e tomam seu lugar as demanda moral, racional e política. O homem se sente só. Instaura-se o abismo (termo preciso do próprio Scholem) entre o homem e Deus.

O terceiro é o místico. Para Scholem, sem a “catástrofe” da perda da natureza mítica, sem o abismo que surge como decorrênci­a da “evolução” da religião em direção à sua condição doutrinári­a e racionalis­ta, não há mística. Por isso, ele diz que a mística é o momento “romântico” das religiões.

Esse romantismo metafórico significa que o místico é uma pessoa que “sente saudades de Deus”, nos termos do cineasta português Manoel de Oliveira (1908-2015). A mística é o esforço para se refazer o mundo no qual as coisas se transfigur­am na face de Deus. A busca dessa “substância” perdida no instante “intelectua­l” da religião. Daí a mescla de gozo e agonia típica das narrativas místicas.

“A Noite Escura da Alma”, poema do místico espanhol católico são João da Cruz (1542-1591), é uma chave conceitual essencial em estudos de mística: a agonia do sentir-se longe de Deus é fundamento e parte da experiênci­a mística.

A tese de Scholem, segundo a qual o racionalis­mo e o moralismo das religiões “atrapalham” a vida estética religiosa (ou seja, a vida das sensações de estar em contato direto com a divindade) e que, portanto, o fundamento da mística é uma “perda de Deus”, é objeto de muita polêmica. Nesse sentido, ele é visto como um scholar herético em estudos de mística, uma vez que o fundamento desta seria uma espécie de consciênci­a religiosa estética perdida.

Para piorar sua condição de teórico herético diante da ortodoxia teórica que associa a mística prioritari­amente ao gozo, é conhecida a sua tese segundo a qual a cabala (coração da mística judaica) vem de fontes exteriores (neoplatoni­smo, religiões iniciática­s gregas ou persas) ao judaísmo “oficial” (o que faria dela “menos” judaica aos olhos de muitos judeus). Por isso, ela é, em si mesma, herética na sua natureza. ponde.folha@uol.com.br @lf_ponde

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Ricardo Cammarota

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