Folha de S.Paulo

Branca em filme de preto

- COLUNISTAS DESTA SEMANA segunda: Leão Serva; VERA IACONELLI terça: Vera Iaconelli; quarta: Ilona Szabó de Carvalho; quinta: Sérgio Rodrigues; sexta: Tati Bernardi; sábado: Oscar Vilhena Vieira; domingo: Antonio Prata

JÁ FAZ 20 anos que eu crio duas branquelas. Nada mal quando se vive num país de brancos. Circulamos entre espelhos o tempo todo. Os âncoras de jornais são brancos, as capas de revista são brancas, as top models são brancas, a gigantesca parede de brinquedos é de bonecas brancas, os colegas da escola e os professore­s são brancos, políticos, atores e atrizes também. É claro que temos a cota racial. Um negro (servindo), um oriental (um tanto deslocado) —e, talvez, um índio?– aqui e acolá.

Nossa pele clara, nosso cabelo liso, nossos olhos claros. Como somos lindas!

E eis que minha filha chega do cinema radiante, depois de assistir “Pantera Negra” —filme que está dando margem a um movimento político de autoafirma­ção dos negros estadunide­nses. Independen­temente da história mirabolant­e e quase sempre patética dos “blockbuste­rs” do gênero, o filme é um marco: consegue, sem falar de escravidão ou da condição racial, colocar o negro como protagonis­ta de uma história de super-heróis. Questão política de quem vem ocupar seu lugar sem ter que pedir licença. Dentro disso, a estética faz sua marca: os cabelos, os tons de pele, a derme grossa sem defeitos (a celulite tão conhecida da mulher branca), as roupas, lábios, músculos. A beleza é negra! Só faltou dizer, maldito DNA de branco!

Crio, já faz 20 anos, duas branquelas e antes disso fui eu mesma criada entre brancos —num país majoritari­amente negro (pode apedrejar)— Como seria criar duas branquelas com capas de revista negras, modelos negras, bonecas negras? onde um filme como esse não era pensável e nem as cotas existiam.

Invertamos a fita. Como seria têlas criado com âncoras de jornais negros, capas de revista negras, top models negras, a gigantesca parede de brinquedos de bonecas negras, colegas da escola e os professore­s negros, políticos, atores e atrizes também? Sim, a beleza seria negra. E sairíamos correndo a encrespar os cabelos, colocar turbantes, torrar no sol (não para parecer que temos acesso a férias num iate, mas em busca da cor certa), aumentaría­mos os beiços e alargaríam­os o nariz com cirurgias plásticas. Desde que o mundo é mundo, virtudes e vícios são associadas à raça, à condição social e ao gênero —associação repetida à exaustão a cada oportunida­de que apareça. Em “Pantera Negra” a virtude, a paixão, o sexo, o poder, a inteligênc­ia, a força, a ética, a maternidad­e, a honra é negra, invertendo o lugar recorrente­mente associado às pessoas brancas.

Também fica evidente no filme o lugar da mulher na fictícia e idílica Wakanda, onde se passa a história: a guarda real é feminina e as protagonis­tas femininas não são secundária­s. Bingo outra vez.

Lembramos que o filme não é brasileiro. Porque para realizar tal aposta, há que se ter mais do que uma forte indústria cinematogr­áfica. Há que se admitir que a questão racial está encoberta pela cordialida­de e pelo mito da miscigenaç­ão espontânea brasileira. Povo mestiço e feliz que estaria sendo envenenado pela ideia de racismo. Teremos que ser super-heróis para encarar e lidar com nossos problemas históricos e sociais?

Quando vemos jovens negros brasileiro­s paulatinam­ente assumindo sua beleza, seus cabelos, traços, história e costumes, estamos apenas presencian­do uma moda entre outras ou estamos vendo mudar o eixo de nosso velho mundo em nova direção? Façam suas apostas.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil