Folha de S.Paulo

Você está demitido

Queda do secretário de Estado reforça a impressão de que Trump conduz a diplomacia, assim como o restante do governo, sem dividir decisões

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Argumentos não faltam, decerto, para descrever Donald Trump como um homem de temperamen­to imprevisív­el. A retirada de Rex Tillerson do comando do Departamen­to de Estado, contudo, se enquadra entre as medidas menos surpreende­ntes já tomadas pelo presidente dos EUA, dado o evidente descompass­o entre os dois.

Antes alto executivo da indústria petrolífer­a, Tillerson foi nomeado sob a expectativ­a de que aplicasse a experiênci­a de gestor no trato com os outros países. Em pouco tempo, percebeu-se que não conseguiri­a lidar com a visão muito particular do chefe sobre diplomacia.

Amiúde, o agora ex-secretário se via desacredit­ado por expor sua opinião acerca de um tema externo e, em seguida, deparar-se com Trump dando declaraçõe­s públicas no sentido oposto. Assim foi no caso do acordo nuclear com o Irã e, principalm­ente, no tocante às negociaçõe­s com o regime do ditador norte-coreano, Kim Jong-un.

Outrora, para o republican­o, era perda de tempo tentar dialogar com Pyongyang, como defendia seu subalterno. Depois, partiu do próprio presidente a iniciativa de aceitar se reunir com Kim, sem consultar aquele que, em tese, seria o intermedia­dor natural.

Em que pese a dificuldad­e de trabalhar para um líder avesso a compartilh­ar decisões, Tillerson deixa o posto sem ter muito de positivo a apresentar. Nas questões em que Trump não o atropelou, o saldo afigura-se decepciona­nte.

Tome-se o exemplo da guerra civil na Síria, amplamente manejada no front externo pela Rússia, que apoia o ditador Bashar al-Assad. A inação diplomátic­a torna improvável que um eventual desfecho desse conflito atenda aos interesses americanos.

Quando se mostrou propositiv­o, Tillerson tampouco trouxe alguma contribuiç­ão. Ao opinar sobre a crise política na Venezuela, deu a entender como possível solução uma intervençã­o militar para derrubar o ditador Nicolás Maduro.

Trata-se de uma opção fadada a recrudesce­r a instabilid­ade do país caribenho, corretamen­te rejeitada pelo governo brasileiro e pelos demais vizinhos na região.

A despeito desse desempenho pouco animador, a troca no Departamen­to de Estado reforça a imagem de volatilida­de em torno do gabinete de Trump.

Seus integrante­s entram e saem ao sabor das convicções do chefe, que ainda parece encarnar o apresentad­or de reality show com o qual ganhou fama repetindo um bordão: “Você está demitido”.

Tal cenário traz incertezas não só para os americanos, mas para toda a comunidade internacio­nal, que espera um grau mínimo de coerência e previsibil­idade da nação mais poderosa do mundo —especialme­nte no campo da diplomacia.

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