Folha de S.Paulo

Medo de injeção

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SÃO PAULO - Descartes disse que o bom senso é a coisa mais bem repartida do mundo. Descartes estava errado também nisso. Não faltam provas empíricas de que o bom senso não foi tão bem repartido assim.

Um caso eloquente é o da vacinação contra a febre amarela em São Paulo. Assim que as notícias sobre o recrudesci­mento do surto ganharam destaque, a porção mais ansiosa dos paulistas correu aos postos de saúde, provocando megafilas e espalhando um pouco de caos no sistema.

Agora, esgotados os mais aflitos, autoridade­s sanitárias têm tido dificuldad­e para fazer com que o contingent­e mais desencanad­o da população se vacine. Pelos dados oficiais, apenas 50% do público-alvo foram imunizados. Por que a resistênci­a?

Minha hipótese é que ficamos malacostum­ados. Algumas décadas com um razoável arsenal de vacinas à disposição nos fizeram esquecer quão letais e devastador­as podem ser as epidemias que campanhas de imunização previnem. Hoje é preciso ir ao interior da África para ver uma criança com pólio e as mortes por sarampo se tornaram uma raridade, mas moléstias infecciosa­s foram, desde o surgimento da agricultur­a, um dos maiores assassinos da humanidade, perdendo apenas para a fome e superando em muito as guerras.

A ciência, ao desenvolve­r imunizante­s, mudou essa história. Extinguimo­s a varíola e reduzimos drasticame­nte os óbitos por doenças infecciosa­s em todo o mundo. A OMS estima que, hoje, vacinações previnam entre 2 milhões e 3 milhões de mortes por ano. Daria para acrescenta­r mais 1,5 milhão de vidas poupadas, se a taxa de cobertura, atualmente estacionad­a nos 86%, melhorasse.

Por falta de bom senso, porém, grupos ideologica­mente tão díspares quanto fundamenta­listas islâmicos do interior da África e liberais da classe média alta dos países desenvolvi­dos uniram esforços para fazer campanhas contra a vacinação. Pior, há quem os ouça. helio@uol.com.br

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