Folha de S.Paulo

Morador do Rio passa 36 h detido após falha em operação militar

Jovem de favela da zona oeste foi algemado, passou por vila militar, dormiu em delegacia e foi levado a presídio

- LUCAS VETTORAZZO LUIZA FRANCO

Morador foi preso ao reclamar da nuvem de spray de pimenta que invadiu seu carro em abordagem do Exército

Um morador da Vila Kennedy, zona oeste do Rio, passou 36 horas detido pelo Exército após uma falha de militares em abordagem durante uma operação na favela.

Carlos Alberto Dória Jr, 26, um relojoeiro, voltava com um amigo de uma festa na madrugada do dia 3 de fevereiro quando seu carro foi parado em um bloqueio das Forças Armadas nos acessos à favela, considerad­a pelos militares um laboratóri­o da intervençã­o federal no estado.

A favela é reduto do Comando Vermelho e fica perto da avenida Brasil, em uma região que registrou aumento recente no roubo de cargas.

Carlos e o amigo foram revistados e tiveram seus documentos checados. O veículo foi vasculhado e nada foi encontrado com os dois, que foram liberados em seguida, ao amanhecer, por volta das 6h.

Mas, quando se preparavam para deixar o local, um outro homem, supostamen­te embriagado, se aproximou do bloqueio e teria desacatado os militares, que usaram spray de pimenta para contê-lo.

Segundo o relato oficial do cabo Pedro Henrique Rodrigues, em depoimento na delegacia de Polícia Judiciária Militar, nesse momento, por acidente, uma nuvem de spray de pimenta invadiu o carro de Carlos e do amigo, que saltaram do veículo e protestara­m contra a ação.

O amigo de Carlos teria se desentendi­do com um sargento, que também usou spray de pimenta contra ele, que, por sua vez, se desvencilh­ou da ação e correu para o interior da favela, deixando Carlos sozinho no bloqueio.

Em seu relato, o cabo diz que Carlos e o amigo foram agressivos com os militares. Eles teriam dito, segundo seu depoimento: “Tá maluco, quer esculachar morador?”. Carlos nega a versão, mas ali começava o seu périplo de 36 horas seguintes sob custódia.

Segundo ele, no momento que perceberam a fuga do amigo, os militares ordenaram que ele se deitasse com o peito e a cabeça no chão e as mãos para trás.

“Eu disse que não tinha necessidad­e, porque eu já tinha passado pela revista e já tinha sido liberado. O erro foi deles de jogar spray dentro do meu carro sem motivo. Nós apenas desembarca­mos e questionam­os aquilo.”

Carlos foi algemado com um lacre plástico e colocado na caçamba de uma viatura do Exército. Foi preso em flagrante por desobediên­cia e levado para a Vila Militar, em Deodoro, a 10 km de lá.

Ali, esperou no pátio até as 7h, quando começaram os depoimento­s —dele e de dois militares testemunha­s do ocorrido. Segundo Carlos, o militar diretament­e envolvido no caso estava com o rosto coberto por uma balaclava e não prestou depoimento, que terminou quase quatro horas depois. No pátio da Vila Militar, pôde fazer contato com sua mãe, com quem mora há 15 anos na Vila Kennedy.

Naquela altura, chegou a pensar que poderia ser liberado. Às 12h, recebeu um prato de arroz, feijão e picadinho de carne, na primeira indicação de que seu caso se arrastaria. Carlos trabalha em uma banca de conserto de relógios com o irmão mais velho e nunca havia sido preso antes. CORRERIA Enquanto Carlos seguia detido em uma instalação militar, advogados militantes dos direitos humanos e a Defensoria Pública da União já tinham sido acionados. Sabiase que um civil não poderia ficar preso na Vila Militar, já que não possui instalaçõe­s para casos do tipo. Ele precisaria ser enviado a uma delegacia da Polícia Civil, o que só ocorreu seis horas mais tarde, às 18h, na unidade de Bangu, a 7 km da Vila Militar.

Quando chegou, porém, Carlos ainda permaneceu uma hora e 40 minutos algemado no porta-malas de uma viatura da Polícia do Exército, na porta da delegacia, aguardando a liberação.

Carlos passou a noite em uma pequena cela, na companhia daquele homem que desacatou os militares e deu início a todo o caso. Não chegaram a conversar e, às 22h, sua mãe levou um lanche.

O crime de desobediên­cia consta do Código Penal e prevê pena de 15 dias a dois anos de reclusão. No entanto, a lei 9.099 diz que, em crimes com pena abaixo de dois anos, o acusado é logo liberado assim que assinar um termo na delegacia no qual se compromete a comparecer em juízo.

Já o Código Penal Militar prevê pena de até seis meses, mas não versa sobre casos de civis —está circunscri­to à insubordin­ação entre militares. “Ele não deveria ter ficado nem uma hora detido. Houve excessos claros nessa questão”, disse o defensor público da União Thales Arcoverde.

O périplo ainda estava longe do fim. Às 11h40 do dia seguinte, os policiais o colocaram em um furgão, rumo ao presídio de Benfica, a 32 km de lá e onde é realizada a triagem do sistema carcerário.

No caminho, a viatura pingou em outras delegacias para recolher presos com o mesmo destino. Carlos ficou três horas no veículo na companhia de um preso por assalto a mão armada e outro por agressão doméstica.

Só chegou ao presídio às 14h30 e, apesar de já haver um alvará de soltura em seu nome, precisou passar pelos procedimen­tos de identifica­ção. Lá, recusou uma quentinha (achou péssima a aparência da comida), e só foi liberado pouco antes das 18h, 36 horas depois da prisão. A versão dos militares diz que havia três pessoas, o que Carlos nega

6h

Segundo Carlos, sem motivo aparente, um militar com o rosto coberto lança spray de pimenta dentro do carro Segundo a versão oficial, o spray entrou no carro por acidente —havia sido lançado contra um outro civil que teria se aproximado bêbado O militar novamente lança spray contra o amigo, que sai correndo para dentro da favela Militares ficam irritados e vão para cima de Carlos, que estava fora do carro

6h05

Militares dão ordem para nova revista nos seus bolsos, e ele argumenta que já tinha sido revistado Segundo Carlos, o militar pede que coloque o rosto e o peito no chão, o que ele se nega a fazer Ele é algemado, colocado no porta-malas da viatura e levado para a Vila Militar, em Deodoro

7h

Carlos e dois militares dão seus depoimento­s Segundo Carlos, o militar que lançou spray e o que fez a

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Militares derrubam barreiras na Vila Kennedy no dia em que Carlos foi preso

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