Folha de S.Paulo

Para organizar a vida, há quem escreva listas enlouqueci­das de mandamento­s e projetos

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TODO MUNDO tem seus pecados, e muitas pessoas, como eu, mantêm o hábito nada saudável de lembrarse deles o tempo todo. Em geral, são mais graves para nós mesmos do que para quem os observa de fora.

Por que se recriminar, por exemplo, por ter comido maçã dentro da igreja? Ou por ter nadado num domingo? Mais ainda: qual o mal de ter feito torta no domingo à noite, ou ter espetado um alfinete no chapéu de um conhecido para provocá-lo?

Esses pecados fazem parte uma lista com 48 itens, alguns dos quais um tanto mais graves. “Ameaçar meu pai e minha mãe de queimá-los e pôr fogo na casa. Dar um soco na minha irmã. Roubar cerejas de Eduard Storer. Negar que as roubei.”

O autor dessa lista foi o físico Isaac Newton, em 1662. Ele tinha 19 anos de idade. O texto aparece em “Listas Extraordin­árias”, livro de Shaun Usher que aparece agora, em excelente tradução de Hildegard Feist, pela Companhia das Letras.

Há um pouco de tudo nessa coleção interessan­tíssima e comovente: regras de etiqueta, inventário­s, coleções de palavras, programas de trabalho, recomendaç­ões para ciclistas, conselhos para jovens escritores. Uma lista de compras pode não ser a leitura mais fascinante do mundo, mas há exceções.

“Dois pães, uma jarra de vinho, um arenque, tortelli.” Nada de extraordin­ário, mas, na página ao lado, vemos reproduzid­a a lista original, com desenhinho­s em tinta ferruginos­a: é uma lista de compras feita por Michelange­lo em 1518.

A de Galileu, quase cem anos depois, é mais variada. “Lentilha, grão-de-bico, arroz, uva passa. Duas balas de artilharia. Tubo de estanho para órgão.”

Mais encomendas? “Uma coberta de pele de lobo, um casaco cinzento de lã grossa, uma bolsa de pelo de camelo, três cordas…” Em caligrafia perfeita, enumeram-se os itens que Ratnavarsa e Praketu, dois monges tibetanos do século 10, teriam de buscar na cidade de Dunhuang, na Rota da Seda.

Nessa mesma linha, há uma relação dos empregados faltosos na construção de uma pirâmide, durante o reinado de Ramsés 2º, por volta de 1.250 antes de Cristo.

Huinefer não trabalhou no dia 3 do segundo mês de inverno, porque tinha problema no olho. O mesmo aconteceu com Kakhtamun, no primeiro mês do verão —mas a maior parte do tempo ele não ia ao canteiro de obras porque estava em conferênci­a com o chefe.

Temos a sensação de que as coisas não mudaram nada —mas também de que mudaram muitíssimo.

Em 1895, um clube de ciclistas de Chicago impunha quase meia centena de recomendaç­ões às adeptas do novo esporte. “Não deixe seu cabelo dourado solto nas costas.” “Não grite se encontrar uma vaca.” “Não use luvas brancas de pelica. Seda é melhor.”

Hoje em dia, há de parecer de mau gosto dar dinheiro a um aniversari­ante. No tempo da rainha Elizabeth 1ª, da Inglaterra, era praxe. Salvo engano, trata-se da maior lista de todo o livro, com os presentes que ela recebeu em 1578: desde um relógio “cravejado de pequenos diamantes”, até “dezoito cotovias numa gaiola”, de Morrys Watkins.

É o universo da burocracia e da ordem doméstica o que se revela em exemplos como esse. Outras listas, entretanto, não poderiam vir senão da personalid­ade particular­íssima de seus autores. Páginas organizam os projetos de Thomas Edison, em 3 de janeiro de 1888. Um “novo fonógrafo”, certo, mas também muitas coisas menos inteligíve­is ao leigo, como “tubo de folha de vidro para uso em moldagem em níquel”.

Ainda no capítulo dos gênios científico­s, há as assustador­as leis estabeleci­das por Einstein para regulament­ar seu convívio conjugal. “Você se absterá de quaisquer relações pessoais comigo, a menos que sejam absolutame­nte necessária­s por motivos sociais.” Quer, ao mesmo tempo, que suas três refeições cheguem sempre normalment­e —“em meus aposentos”, sublinha.

A normalidad­e, por sua vez, também espanta. O código de honra da Máfia, com poucos itens, é de modo geral admirável. Preparando-se para um grande poema sobre a morte de Abraham Lincoln, o genial Walt Whitman anota trivialida­des: “aflição profunda - imenso pesar trevas soturnas” e coisas do tipo.

Gênios normalíssi­mos, ao lado de normalidad­es tornadas loucas pelo tempo, juntam-se neste livro, feito de ordem e desordem, de desejos e deveres, de monstruosi­dade e graça, como qualquer um de nós. coelhofsp@uol.com.br

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André Stefanini

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