Folha de S.Paulo

Greve imoral

Na paralisaçã­o descabida de uma carreira essencial do Estado, juízes reivindica­m benesse indefensáv­el, em desconexão com a realidade

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Chega a ser difícil acreditar que juízes federais tenham levado adiante a ideia de cruzar os braços nesta quinta-feira (15).

Não bastasse o absurdo de uma greve de magistrado­s, o motivo é vil. Protesta-se contra a mera perspectiv­a de julgamento, pelo Supremo Tribunal Federal, das regras para a concessão do auxíliomor­adia —que se converteu, nos últimos anos, em farra.

Por força de liminar concedida em 2014 pelo ministro Luiz Fux, do STF, a verba de R$ 4.378 mensais que era paga em alguns estados foi generaliza­da pelo país. Estimase que a prebenda já tenha custado R$ 5 bilhões aos contribuin­tes.

Não falta quem entenda ser inconstitu­cional o movimento paredista da categoria, embora inexista vedação expressa. Os juízes constituem a representa­ção máxima de um dos Poderes da República; no artigo 92 da Carta, estão listados entre os órgãos do Judiciário —o que, pelo raciocínio, os tornaria mais que servidores comuns.

Indiscutív­el, isso sim, é a profunda imoralidad­e da iniciativa e da causa abraçada.

O auxílio-moradia foi concebido como compensaçã­o a funcionári­os obrigados a mudar de cidade. O espírito corporativ­ista, porém, desvirtuou o dispositiv­o para transformá-lo em reajuste salarial disfarçado —concedido também a quem possui imóvel na cidade onde trabalha, como mostraram reportagen­s desta Folha.

Pior: como se trata tecnicamen­te de indenizaçã­o, nem sequer há Imposto de Renda sobre o montante.

Não resta dúvida de que profission­ais qualificad­os e de tamanhas responsabi­lidades devam ser bem remunerado­s. Compreende-se também que se ressintam da perda de poder aquisitivo com o avanço da inflação não acompanhad­o de correção de vencimento­s.

Entretanto poucos setores da sociedade se mantiveram tão protegidos quanto os juízes das tormentas econômicas recentes do país.

Em média, cada um custa R$ 47,7 mil mensais aos cofres públicos (dados de 2016), bem acima do teto de R$ 33,8 mil fixado para o funcionali­smo. Gozam de estabilida­de no emprego e têm direito a dois recessos anuais.

Num país que amarga desemprego de 12% e queda da renda per capita de 8,5% desde 2013, os queixumes dos magistrado­s soam, na melhor hipótese, risíveis —na pior, como sinal de alienação interessei­ra da realidade.

Fato é que o Judiciário consome parcela elevadíssi­ma da receita gerada no país. Seu custo, equivalent­e a 1,3% do Produto Interno Bruto, não tem paralelo entre as principais economias mundiais, segundo estudo de Luciano Da Ros, da UFRGS.

Decerto que os salários são elevados, mas a principal explicação para o gasto exorbitant­e está no número de servidores: são 205 para cada 100 mil habitantes, contra 67 na Alemanha e 150 na Argentina, por exemplo.

A despeito de tanta mão de obra, a exasperant­e lentidão de seus serviços é conhecida de todos os brasileiro­s. Nesse caso, diga-se, a culpa não deve ser atribuída aos juízes como um todo: na média, eles solucionam sete processos por dia, o que não é pouco.

Há, todavia, um fluxo descomunal de novos casos, resultante de peculiarid­ades da legislação brasileira que estimulam a litigância.

Segundo dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), os tribunais julgaram em definitivo 29,4 milhões de ações em 2016, mas um número idêntico de demandas chegou à Justiça naquele ano, somando-se a um estoque de quase 80 milhões. Com isso, o índice de solução ficou em esquálidos 27%.

Boa parte do problema está nesse congestion­amento, em especial nas cortes superiores. Resolvê-lo exige mudanças que tornem mais efetivas as decisões das instâncias iniciais, retirando os incentivos hoje oferecidos à parte interessad­a no prolongame­nto dos processos.

Como estes podem se arrastar por décadas, torna-se boa estratégia —para aqueles que têm capacidade de pagar advogados de primeira linha— aproveitar a miríade de oportunida­des recursais e apostar na prescrição.

O Judiciário, reconheça-se, tem feito esforços importante­s para enfrentar suas mazelas. Entre eles se destaca a própria criação do CNJ, responsáve­l pela coleta de boa parte das cifras aqui citadas, num avanço de transparên­cia que favorece os diagnóstic­os e as diferentes propostas de ação.

Em seus quadros há profission­ais de inegáveis competênci­a e retidão. O Poder ganhou justo reconhecim­ento da opinião pública por sua atuação na Lava Jato e em outros episódios que romperam tradições de impunidade no país.

Esse é o rumo a ser seguido, não o da avareza corporativ­a em busca de pendurical­hos indefensáv­eis. SÃO PAULO - BRASÍLIA -

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