Folha de S.Paulo

Se mortes houver

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Donald Trump acaba de nomear Gina Haspel para dirigir a CIA, uma decisão com repercussã­o direta sobre o Brasil.

Haspel comandou um centro clandestin­o de tortura no auge da chamada “guerra ao terror” do governo de George W. Bush. Sob sua responsabi­lidade, suspeitos de terrorismo foram submetidos a práticas tais como afogamento, sufocament­o forçado, aplicação de drogas, privação de sono e pau de arara.

À época, o endosso da Casa Branca a esse tipo de conduta contribuiu para legitimar a tortura como instrument­o de política pública em todo o planeta.

No Brasil, a discussão àquela época concentrou-se no caso da Febem, a autarquia do estado de São Paulo responsáve­l pela custódia de jovens infratores. Uma série de investigaç­ões revelou o uso sistemátic­o da tortura em suas instalaçõe­s e gerou uma condenação por parte da Corte Interameri­cana de Direitos Humanos.

No processo, acumulou-se evidência de que o Tribunal de Justiça de São Paulo barrava processos do Ministério Público que utilizasse­m palavras como tortura e maus-tratos. O governo estadual trocou o nome da Febem por Fundação Casa, uma medida para inglês ver.

A legitimida­de da tortura nos Estados Unidos, porém, entrou em declínio com rapidez. Pesquisas em meados da década de 2000 revelaram que o uso da tortura é inócuo para extrair informaçõe­s sensíveis de detentos, além de ser contraprod­ucente no combate ao terrorismo internacio­nal. Acuada, a CIA ordenou que Haspel destruísse as fitas gravadas durante as sessões de tortura conduzidas sob seu comando.

Uma vez eleito, Barack Obama tornou tais práticas ilegais. Agora, a nomeação de Haspel confirma qual será a lógica do jogo no governo Donald Trump. Quem defende a tortura como prática legítima ganhou fôlego. E, devido à capacidade que o ordenament­o jurídico americano tem de afetar o arcabouço normativo global, a decisão terá reverberaç­ões por todo o planeta.

Poucos países encontrams­e em posição mais central nessa história do que o Brasil. O uso da força por parte dos agentes do Estado está na ordem do dia, devido à pré-candidatur­a de Jair Bolsonaro e à intervençã­o militar de Michel Temer no Rio de Janeiro.

“Se mortes houver, a culpa é [dos criminosos], e não dos nossos soldados”, escreveu nesta Folha, na última terçafeira (13), o presidente da Comissão de Direitos Humanos do Instituto de Advogados de São Paulo, Ricardo Sayeg. “Que não venham no futuro os hipócritas dos ‘direitos dos manos’ exigir punição de nossos soldados”.

Nossa capacidade de fazer vista grossa a abusos será influencia­da em cheio pelo ambiente global. O mundo de Trump também é aqui.

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