Folha de S.Paulo

Reino Unido acusa Rússia de atacar ex-espião e expulsa 23 diplomatas

May chama tentativa de envenename­nto de ‘uso ilegal da força do Estado russo’ contra Londres

- IGOR GIELOW

Britânicos congelam contatos com Moscou; crise reforça imagem de Putin de defensor dos interesses do país

O Reino Unido acusou formalment­e a Rússia nesta quarta (14) de envenenar o exespião Serguei Skripal e sua filha, Iulia, em solo britânico.

Segundo a primeira-ministra, Theresa May, o “uso ilegal de força do Estado russo contra o Reino Unido” será respondido com a expulsão de 23 diplomatas acusados de espionagem e com o congelamen­to de contatos diplomátic­os de alto nível.

May afirmou que só havia duas hipóteses plausíveis para o ataque com o agente neurotóxic­o Novitchok do último dia 4. Ou o Kremlin ordenara o envenename­nto, ou perdera controle sobre uma perigosa arma química.

“Nenhuma explicação sobre como esse agente foi usado no Reino Unido foi dada. Em vez disso, eles trataram o uso de um agente neurotóxic­o com sarcasmo, desdém e desafio”, disse ela.

Para May, “não há outra conclusão além da culpa do Estado russo pela tentativa de assassinat­o do senhor Skripal e de sua filha, e pela ameaça às vidas de outros cidadãos britânicos”.

O Ministério das Relações Exteriores russo disse que a medida é “inaceitáve­l”. É de se esperar a expulsão de um número correspond­ente de diplomatas britânicos na Rússia, como é praxe.

Para May, a saída dos 23 supostos espiões, que deverá ocorrer em uma semana, afetará as capacidade­s de ação de Moscou. Hoje, há 58 diplomatas russos em Londres.

Trata-se da mais grave crise diplomátic­a entre Moscou e o Ocidente desde que o governo de Vladimir Putin reabsorveu a Crimeia da Ucrânia em 2014, levando a uma série de sanções ocidentais.

Ela não deve, contudo, ser superestim­ada: May disse que estudará, mas não anunciou nenhuma sanção a altos oficiais russos, como o viceprimei­ro-ministro Igor Shuvalov, que tem propriedad­es em Londres —como a maioria da elite em seu país.

Retaliação econômica também não foi citada, e isso reflete o fato de que há muito investimen­to russo no Reino Unido, e vice-versa: a petroleira britânica BP, por exemplo, tem 19,75% da Petrobras da Rússia, a Rosneft.

Haverá algum impacto nas atividades diplomátic­as com a expulsão, a maior do tipo em 30 anos, e o congelamen­to das relações é inédito.

Fica o desconfort­o simbólico. May retirou um convite para que o chanceler Serguei Lavrov visitasse o país e informou que políticos e membros da família real britânica não irão à Copa do Mundo na Rússia. Não se confirmou, contudo, o aventado boicote da seleção nacional.

Em resposta à crítica de Lavrov sobre a falta de acesso ao Novitchok, agente criado na antiga União Soviética e teoricamen­te destruído no pósGuerra Fria, a primeira-ministra disse que submeteria o material à Organizaçã­o pela Proibição de Armas Químicas.

May também anunciou que serão reforçados os controles sobre russos visitando o Reino Unido. E frisou que as medidas foram discutidas com os presidente­s Donald Trump (EUA) e Emmanuel Macro (França), além da chanceler Angela Merkel (Alemanha).

Em reunião extraordin­ária do Conselho de Segurança da ONU, onde Londres e Moscou têm poder de veto, o embaixador da Rússia negou qualquer envolvimen­to do país no caso e disse que se tratava de uma armação para manchar a imagem do Kremlin. PUTIN Ao fim, a medida reforça o discurso putinista de que está defendendo os interesses da Rússia, às vésperas da eleição que irá ganhar no domingo. “Essa é a arena dele”, observou Alexei Levinson, diretor no Centro Levada, o mais respeitado instituto de pesquisa de opinião do país.

Não é todo dia que uma potência acusa autoridade­s russas de usarem armas químicas em seu território. Mas Putin não parece ligar. Tem sob sua aba a resiliênci­a da economia russa. Nos últimos anos, o sistema bancário sob isolamento do país se robusteceu, e o aumento do gasto militar entregou resultados na Síria e na Ucrânia.

Em resumo, não parece haver muito que possa incomodar a Rússia. A questão remanescen­te é saber quem tentou matar Skripal e Iulia.

Poderia haver um interesse do Kremlin na morte do agente duplo, mas o preço diplomátic­o parece alto demais quando a eleição está ganha.

É questionáv­el se Skripal, com seis anos de cadeia na ficha e soltura por ocasião de uma troca de agentes com Londres em 2010, teria algum segredo a mais.

A teoria segunda a qual a ordem veio do Kremlin para lembrar a todos de sua capacidade parece pueril, o que leva a duas outras hipóteses.

Primeiro, a de que Skripal foi atacado pelo próprio serviço secreto britânico, com o contestado governo de May buscando relevo político. A conjectura é tão frágil quanto acusar o Kremlin.

Segunda opção: a ação tem a ver com alguma dívida do passado de Skripal, seja com russos, seja com agentes de outro país. Ao fim, as teorias da conspiraçã­o servirão ao gosto de cada cliente.

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