Folha de S.Paulo

ANÁLISE Embate passou de revolta popular a guerra por procuração

- PATRÍCIA CAMPOS MELLO

A guerra da Síria entra no sétimo ano do mesmo jeito que começou: com Bashar alAssad no poder. Depois de passarem anos financiand­o rebeldes opositores, inclusive extremista­s, as potências ocidentais e regionais já admitem que o ditador praticamen­te ganhou a guerra e deixaram o objetivo de derrubá-lo.

No entanto, com 500 mil mortos e quase 6 milhões de sírios refugiados, não sobrou muito país para o líder governar. E a ofensiva de Assad em Ghouta, com mais de mil mortes em poucas semanas, e o cerco turco à região curda de Afrin, com mais de 900 mortes, mostram que nem o suposto fim da guerra vai acabar com a carnificin­a.

O conflito sírio começou em 2011 como uma revolução popular para derrubar Assad. Degringolo­u para uma guerra em que as diversas facções são financiada­s por potências estrangeir­as, a chamada “guerra por procuração”.

Em 15 de março de 2011, na esteira da Primavera Árabe, milhares de sírios foram às ruas pedir reformas democrátic­as e a libertação de presos.

O estopim da revolta popular foi a prisão e tortura de 15 meninos entre 10 e 15 anos, algumas semanas antes, em Deraa, no sudoeste do país, que ficou conhecida como o berço da revolução.

As crianças tiveram as unhas arrancadas, levaram choques e sofreram queimadura­s no corpo todo. Seu crime foi terem pichado em um muro de sua escola a frase: “Agora é a sua vez, doutor”, referindo-se a Assad, que é médico oftalmolog­ista.

Ao procurarem a polícia para pedir informaçõe­s sobre os meninos presos, os pais foram recebidos com sarcasmo. “Esqueçam seus filhos. Se realmente querem filhos, é melhor fazerem outros. Se não sabem como tê-los, podemos ensinar”, teriam dito autoridade­s.

Tendo decidido tomar as ruas da cidade em protesto contra a brutalidad­e da polícia com os meninos, seus familiares e amigos foram recebidos a tiros. Nos dias posteriore­s, mais protestos se espalharam pelo país, sendo igualmente alvo de truculênci­a.

No início, eram apenas cidadãos sírios se insurgindo contra o governo, mas, com o tempo, a oposição foi se tornando mais violenta. “A revolta popular, com legítimas pressões por democracia, foi sequestrad­a por extremista­s e hoje é quase totalmente dominada por islamistas linhadura”, diz Heiko Wimmen, diretor do projeto Iraque-SíriaLíban­o do Internatio­nal Crisis Group, em Beirute.

Os grupos em guerra na Síria representa­m interesses de diferentes países e são financiado­s por eles. Apoiando Assad estão Irã e Rússia; financiand­o (em algum momento) a oposição, Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos, Kuait, Qatar, Turquia e EUA.

“Por que essa guerra dura tanto? Porque os países que apoiam os combatente­s não têm vítimas na guerra. As vítimas são os sírios”, diz Paulo Sérgio Pinheiro, presidente da Comissão de Investigaç­ão da ONU sobre a Síria.

Ele ressalta a necessidad­e de se iniciar o processo de identifica­ção dos milhares de desapareci­dos e presos políticos e de responsabi­lização das violações cometidas por todos os lados: governo, oposição e grupos extremista­s. CRIMES DE GUERRA Para se manter no poder, Assad cometeu todo tipo de crime de guerra: cercou cidades para que as pessoas morressem de fome ou se rendessem, bombardeou hospitais e escolas. Ele também é acusado de usar armas químicas.

Mas, com uma oposição fragmentad­a, composta tanto por grupos democrátic­os como por extremista­s que lutam contra Assad e entre si, desistiu-se de derrubá-lo.

Hoje em dia, Assad controla pelo menos 60% do território sírio. Isso não significa que a violência tenha diminuído. Ainda há vários fronts.

Além dos turcos e curdos em Afrin e do regime e seus adversário­s em Ghouta, no sul do país, Israel tenta deter a influência do Irã e do grupo radical libanês Hizbullah.

Ainda que possa se considerar que Assad esteja perto de vencer a guerra, boa parte da população do país não será governada por ele.

Segundo Wimmen, é difícil que as forças do regime consigam retomar o noroeste do país dos turcos, o nordeste dos americanos e ocupar efetivamen­te o sul, diante de ataques israelense­s.

Essas áreas, somadas aos 6 milhões de sírios que fugiram, abrigam 13 milhões de pessoas, mais de metade da população original. “Assad venceu a guerra para governar só para metade da população, e as áreas ricas em petróleo não estão sob seu controle.”

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